Abro a página da Deustche Welle para descobrir que, há alguns dias, um gaiato de intenções obscuras roubou a cabeça do cineasta Friedrich Wilhelm Murnau. Pulou o muro do cemitério de Stahnsdorf, perto de Berlim, violou a tumba da família e assaltou o corpo embalsamado que ali descansava desde 1931. O verdadeiro crime insólito, cujas motivações estão bem plantadas no solo turfoso e fumegante da maluquice.
Consciente da relação perene entre o romantismo e a civilização alemã, a polícia caminha por uma linha de investigação associada à mística do próprio diretor. Junto com Fritz Lang, Murnau formou a grande dupla do cinema expressionista, cujas obras, como bem instigou o crítico Siegfried Krakauer, denunciaram inconscientemente o nazismo com anos de antecedência em relação aos primeiros comícios de cervejaria feitos por Hitler. Os vilões-protagonistas de seus filmes – cientistas loucos, mesmeristas, ladrões geniais, sonâmbulos e mágicos de feira – seriam arquétipos dos governantes e do povo alemão em um período histórico complicadíssimo. Faz muito sentido.
Murnau e Fritz Lang denunciaram inconscientemente o nazismo com anos de antecedência em relação aos primeiros comícios de Hitler
Murnau, porém, alcançou outro nível de fascínio de massa por causa de Nosferatu, fita de 1922 que escreveu um capítulo do grande livro dos vampiros. Conta a história que a viúva de Bram Stoker, Florence, proibiu o cineasta de filmar Drácula quando as câmeras, o elenco e o dinheiro já estavam garantidos. Para não perder o bonde, Murnau modificou o enredo – os vampiros, afinal, pertenciam ao imaginário europeu desde, pelo menos, a Grécia – e engendrou um vilão peculiar.
Orlok, o “nosferatu” da hora (a palavra nosferatu vem do romeno e significa algo como “o insuportável” – sutil assim), é careca, grandão, tem orelhas pontudas, mãos e unhas gigantes e, de quebra, horripilantes dentes de rato. E, como o filme era mudo, o miserável ainda não falava nada, mirando o público com uns olhões vidrados e flecheiros. Um vampiro tão rematado que, segundo uma lenda da época, era um vampiro mesmo disfarçado de Max Schreck, o ator que o interpretou.
De tão arquetípico, acabou incorporado à cultura popular e veio sendo redescoberto e potencializado ao longo das décadas, resistindo mesmo aos vampiros de hálito puro e dentes mais brancos dos últimos anos. Uma criatura monumental.
Agora, roubaram a cabeça de Wilhelm Murnau, tentando, quem sabe, capturar os pensamentos do diretor, vingar-se de suas indiscrições sobrenaturais ou obter alguns sinistros trocados. E Nosferatu com isso? Só mesmo a gélida eficiência da polícia alemã para solucionar um mistério digno do expressionismo alemão. Aguardemos.
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