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Acabo de ler na BBC uma notícia dando conta do sucesso de vendas, nos Estados Unidos, de um fuzil de assalto cujo corpo é gravado com cruzes e um texto do Velho Testamento: “Bendito seja o Senhor, minha rocha, que adestra minhas mãos para a guerra, meus dedos para a batalha”. Uma arma, por princípio, mais próxima da literatura e do cinema que da realidade.

A vida, porém, daria uma boa obra de arte: em 72 horas, o fabricante despachou um lote inteiro do modelo “AR-15 Crusader”, avidamente comprado por cristãos fundamentalistas adeptos da “cultura do rifle”. É de se imaginar, aliás, que nos últimos dias esse povo deve ter disparado milhares de projéteis aparentemente abençoados contra abóboras e galões de água nos estandes de tiro dos estados que liberam o arsenal de guerra.

Não entro no mérito do estranhamento relacionado à venda de armas pesadas para civis. Muito menos na potencial e trágica constelação que associa fé religiosa ao argumento dos projéteis. No fim das contas, a coisa é tudo menos divina, a não ser que consideremos a devoção a deuses como Ares, Thor e Indra.

Uma arma, para um homem pragmático – do cristão ao muçulmano, do budista ao ateu –, é só uma arma

O que mais chamou minha atenção antropológica, de fato, foi perceber a prevalência de práticas simbólicas tão arcaicas. O “fuzil cristão” do século 21 é apenas e tão somente o filho mais novo de uma linhagem de armas que começa com as primeiras espadas sagradas forjadas pelos chineses, escorrega pelas flechas direcionadas magicamente pelos antigos persas (“vá e acerte!”, sussurrou o arqueiro), bate nos escudos cruzados e reflui em aviões batizados com nomes de animais totêmicos.

Um dos argumentos de venda do fabricante, aliás, reforça a ideia: segundo ele, os muçulmanos (os adversários da hora) jamais se atreveriam a tocar nos tais fuzis por razões teológicas. Uma belíssima defesa da pior espécie, que, aliás, não passa pelo crivo da realidade. Uma arma, para um homem pragmático – do cristão ao muçulmano, do budista ao ateu –, é só uma arma, cuja única relação com um possível sobrenatural reside na capacidade de despachar pessoas para o “outro lado”.

Pode-se alegar que, na maioria dos casos, o tal fuzil vai funcionar apenas no nível simbólico, como uma espécie de sinal distintivo de fé que jamais será acionado de fato. Pode ser que sim. Pode ser que não, ainda que por uma única vez – e aí mora todo o perigo.

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