Outro dia, enquanto assistia a um episódio de “The Lizzie Borden Chronicles”, série televisiva que carrega na hemoglobina ao descrever a vida de uma suposta assassina histórica da Nova Iorque do final do século 19, fiquei imaginando como seria uma história semelhante ambientada na Curitiba do mesmo período. Perfeito enredo de crime vitoriano, sem morte por roubo de galinha ou em briga de bolicho, mas algo na linha das obras ambientadas por Edgar Allan Poe na Paris pré-haussmanniana ou, então, dos tenebrosos assassinatos perpetrados por Jack, o Estripador. Crimes estapafúrdios, cometidos à sombra dos pinheirais e nos sótãos dos primeiros sobrados de arquitetura eclética da vizinhança da Praça Tiradentes.
Guardadas as devidas proporções – em 1880, a população de Paris chegava a 2,2 milhões de habitantes, a de Nova Iorque a 1,2 milhão e a de Curitiba, a singelos vinte mil –, não é impossível imaginar o enredo. Isso porque, a despeito das nossas condições periféricas, já existiam aqui os componentes apontados pelos especialistas como essenciais às histórias do gênero.
Somem-se ao quadro as primeiras sociedades esotéricas, os primeiros jornais, o olhar conservador das elites
O primeiro deles, o chamado fator metropolitano, caracterizado pela transformação do velho cenário colonial português em algo mais rápido e universal, a “Großstadt” iluminada a gás e transportada pelos primeiros bondes. O segundo, o surgimento e consolidação de uma classe média associada à indústria (no caso curitibano, da madeira e da erva-mate), à ferrovia, à burocracia e ao comércio de bens luxuosos para consumidores ávidos de Europa. Uma pequena burguesia universal que apresentou ao mundo, inclusive, o conceito de privacidade, algo desconhecido tanto pelo populacho que vivia em promiscuidade espacial quanto pelos cortesãos que passavam suas vidas a ostentar e a fiscalizar a ostentação dos próprios pares.
Um terceiro fator, especialíssimo, havia entrado em cena algum tempo antes, por volta de 1830, com a chegada dos primeiros imigrantes às imediações do atual Centro Histórico. O elemento estrangeiro, o outro de falar arrevesado e hábitos sempre suspeitos aos estabelecidos.
Somem-se ao quadro as primeiras sociedades esotéricas, os primeiros jornais, o olhar conservador das antigas elites e o escandaloso desejo coletivo de saber o que acontecia atrás das portas dos chalés e dos palacetes.
Isso, um rastro de sangue na geada e o corpo sem mãos (terno de linho em pleno inverno e um texto em gótico no bolso do paletó) caído em uma das centenas de valetas da Curitiba fin-de-siècle – e teríamos um razoável início de novela de mistério. Que, de repente, está brincando de vir à luz em uma crônica de jornal.
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