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Veríssimo

Medo antigo

Falou-se numa ameaça de atentado nuclear em Nova York, na semana passada. A possibilidade de outro ataque tão terrível quanto o de 11/9 nunca está longe da imaginação. É um medo constante. E um medo novo, impensável em outras eras, como a da Guerra Fria com a União Soviética, em que ao menos se sabia de onde viria o ataque. O terror não virá mais em foguetes intercontinentais, pode estar numa maleta abandonada na calçada ou em forma de bactérias espalhadas pelo ar. Há algo de retro no novo medo, na sua evocação de símbolos e situações de romance antigo. Bush chamou o Bin Laden de "the evil one" – "o mau". Quando foi a última vez, na ficção ou fora dela, que se evocou algo parecido com um insidioso mestre do Mal por trás do temor difuso que nos inquieta?

A personalização do mal numa figura exótica que mobiliza súditos fanatizados era uma tática recorrente do colonialismo europeu, que no seu ocaso precisava equiparar ataques ao seu domínio a ataques à razão e às religiões sensatas. A Inglaterra começou a perder a Índia quando Gunga Din, o personagem de Kipling que dava a vida para salvar seus mestres ingleses dos selvagens adoradores da deusa Kali, se transformou em Mahatma Ghandi, tão pertinaz quando os adoradores de Kali, mas – fatalmente, para os ingleses os escândalos do palácio, ao contrário dos escândalos do parlamento, não têm conseqüência. O direito divino do soberano foi substituído pela simpatia apesar de tudo que o mantém acima do feio espetáculo dos "comuns" – amável como Din. O pacífico Ghandi não podia ser caracterizado como um mameluco maluco. Seu tipo de insurreição era inédito, ele foi o fim dos dervixes providenciais que podiam ser abatidos sem remorso na defesa do império, e o fim do "raj", ou da Índia Inglesa.

Mas os mestres do Mal da ficção não eram líderes insurrecionais ou sequer fanáticos religiosos. O Mal que representavam não tinha causa, patológica ou política – eram "evil ones" apenas porque era maus, ou apenas porque eram orientais, como o doutor Fu Manchu. De quem Bin Laden é uma nova versão, revisada, tecnicamente atualizada, adaptada para a TV e a internet. Sua fortuna espalhada pelos mercados financeiros do mundo e seus seguidores secretos supostamente só esperando mensagens cifradas pela CNN para espalharem mais terror repetem a teia de sortilégio hipnótico, que também cobria o mundo, do satânico doutor.

O possível ataque com venenos também é evocativo, embora nada possa ser mais moderno do que tóxicos feitos em laboratório. A literatura antiga está cheia de filtros e poções nunca bem explicados interferindo nas tramas, arranhões ao folhear um livro ou abrir uma carta – sem falar em líquidos furtivamente derramados de anéis falsos em copos desprotegidos – levando a mortes misteriosas e desenlaces inesperados. Não se sabia da existência de bactérias. A descoberta das bactérias – de um mundo de coisas invisíveis e possivelmente letais vivendo com, e muitas vezes na, gente – foi uma das grandes contribuições da ciência para o terror da humanidade. Ao mesmo tempo que traziam a explicação e a cura de muitos males, eram inimigos que a gente nem sabia que tinha. Mas não contavam com o mesmo prestígio literário das emulsões venenosas, talvez porque a idéia do seu cultivo meticuloso não fosse literariamente tão atraente quanto a de alquimistas destilando líquidos mortais de plantas obscuras e sapos nojentos. Agora os venenos sub-reptícios estão de volta, com as bactérias substituindo as poções.

Bem que poderiam ter deixado a literatura antiga em paz.

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