Estou me sentindo culpado. Nunca usei o trema. Desde que aprendi a escrever sem piadas, por favor , ignorei o trema. Quando comecei a escrever, por assim dizer, em público, continuei a ignorá-lo. Os revisores, se quisessem, que acrescentassem os tremas onde cabiam. Por vontade própria, nunca botei olhos de cobra em cima de nenhum "u". Nem mesmo quando o computador, com sua conhecida aversão à informalidade gramatical, sublinhava a palavra em vermelho para me avisar que estava faltando o trema, burro! Se dependesse de mim o trema não existiria.
Mas com a nova reforma ortográfica, o trema vai desaparecer. E eu fiquei com remorso. Talvez tenha sido injusto com ele. O trema, afinal, tinha uma história. Tinha uma razão para existir, mesmo modesta. Tinha uma função, mesmo dispensável. E eu o desdenhara sem dó, coitadinho. Como me penitenciar?
Esta pode ser a última oportunidade que terei para usar o trema e compensar todas as vezes que o omiti por pura implicância. A reforma já está sendo implantada, os pontinhos marcham, dois a dois, para o esquecimento, tenho pouco tempo para me reabilitar. Mas como?
Quase todas as matérias que li sobre o fim do trema citavam que ele só continuará sendo usado em nomes estrangeiros como Müller e Anaïs. Müller e Anaïs! Uma história para Müller e Anaïs, rápido.
Uma história com seqüência, conseqüência, eloqüência...
Talvez uma história policial: a dupla Müller e Anaïs atrás de delinqüentes.
Ou uma história de excessos eqüestres levando ao uso freqüente de ungüentos.
Ou uma simples cena doméstica. Müller e Anaïs na cozinha do seu apartamento, eqüidistantes de um pingüim em cima da geladeira. Müller acaba de chegar da rua.
Anaïs, esse pingüim...
Quequi tem?
Eu não agüento esse pingüim, Anaïs.
Ele está aí há cinqüenta anos e só agora você nota?
Cinqüenta anos, Anaïs?
Está bem, cinco. Um qüinqüênio.
Um qüinqüênio?
Um qüinqüênio. E vai ficar aí outro qüinqüênio.
Não se usa mais pingüim em geladeira, Anaïs. É uma coisa do passado. Como a crase.
Pois eu gosto e está acabado. Trouxe a lingüiça?