A Guerra da Tríplice Aliança, como é chamada a Guerra do Paraguai além do Rio Paraná, é episódio não devidamente valorizado na conformação histórica do hemisfério. Envolto em narrativas impróprias, vezes por preconceito, vezes por má fé ideológica, o conflito encerra tragédia monumental, de heroísmos e de crueldades desmedidas, a serem julgadas somente no rigoroso contexto de tempo e de espaço. Da crueza dessa guerra é que nascem os países platinos como hoje concebidos, o Uruguai e a Argentina modernos, mas também o Brasil. A propósito, foi a luta contra López que fez aglutinar a brasilidade dispersa do Segundo Reinado, diluída na vastidão continental, a unir amazônidas, cearenses, gaúchos, todos irmanados no mesmo campo de batalha. Depois, os tenentes da Guerra do Paraguai seriam os marechais da Proclamação da República, como Deodoro e Floriano.
Presente no imaginário profundo do país, na forma de nomes de logradouros e de ruas Riachuelo, Boqueirão, Osório, para citar exemplos curitibanos , a Guerra do Paraguai serviu ainda para despertar o paranismo, o sentimento de pertencimento à província, como consta nos escritos exemplares de Davi Carneiro.
Hoje a história é bem outra. As relações com o país vizinho são amistosas e voltam a se normalizar após o impeachment relâmpago do bispo-presidente, que fraturou o Mercosul em 2012. Tratou-se do controverso juízo de atentado à cláusula democrática imputado ao Paraguai, adotado pelo eixo Uruguai, Argentina e Brasil, a reconstituir a velha Tríplice Aliança quase um século e meio depois.
Se as relações Brasília-Assunção não podem sofrer abalos, haja vista a realidade forjada a cimento e ferro das comportas de Itaipu, com interesses binacionais inseparáveis, ainda necessita o Brasil consolidar total harmonia com vizinhos. Trata-se de plataforma indispensável ao projeto de inserção internacional, como quinta economia mundial já em 2016. Nesse patamar, o Brasil terá como contendores os demais Brics, mas será o único a conviver pacificamente, sem o espectro da guerra a pairar na vizinhança, como a que ocorre entre Índia e Paquistão.
O novo governo paraguaio, não isento de acusações graves, mas fruto da escolha livre e soberana de seu povo, tem demonstrado abertura para o pleno e pronto retorno ao Mercosul. À parte circunscrito nacionalismo irracional, a delirar com um Paraguai asiático e voltado para o Oceano Pacífico, não há vozes que destoem da tendência conciliadora do presidente Horácio Cartes. Com propostas modernas de gestão e de abertura da economia, deve ele demonstrar que empresários bem-sucedidos também podem fazer boas escolhas políticas. Pela frente, difíceis desafios a serem superados, a exemplo da revisão do Tratado de Itaipu, que, prevista para a próxima década, já começa a ser urdida, além do saneamento da questão fundiária, a interessar brasiguaios tão importantes para o desenvolvimento do país.
O canhão Cristiano, fundido com os sinos das igrejas de Assunção daí seu apelido , apresado pelas tropas brasileiras na Batalha de Humaitá e hoje exposto como troféu de guerra no Rio de Janeiro, tem sido objeto de recorrentes reivindicações paraguaias. É um imbróglio administrativo poder devolvê-lo, tombado como patrimônio público, a envolver pareceres de instituições sinuosas e cheias de burocracia de pequenos poderes. Porém, assente na moderna cultura dos povos, a memória da guerra não deve ser senão o pacifismo imaterial, como de resto é a índole do povo brasileiro. Não são rancores pretéritos que edificam nações: devolva-se o Cristiano já!
Jorge Fontoura é doutor em Direito Internacional e especialista em política externa
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