Estrasburgo é a capital da Alsácia, terra de chucrute e vinho branco. É uma bela cidade, com seus canais, seu centro histórico classificado pela Unesco como patrimônio da humanidade e sua impressionante catedral, a Notre Dame de Estrasburgo, cuja torre já foi a construção mais alta do mundo, o primeiro arranha-céu. Em comparação com a austera e elegantemente simétrica Notre Dame de Paris, a de Estrasburgo só pode ser descrita com um neologismo arquitetônico: rocogótica. Como está assentada numa praça desproporcional ao seu tamanho, como um Pão de Açúcar num pires, é difícil você recuar para acompanhar a vertiginosa fuga para o alto da sua única torre. Há pouco espaço para você se maravilhar. Ainda mais se você for eu, e não tiver mais a necessária flexibilidade dorsal.
Mas há uma nova atração em Estrasburgo. O artista gráfico Tomi Ungerer, natural da cidade, doou seu acervo, incluindo desenhos, pinturas e uma grande coleção de brinquedos, à comunidade, que cedeu um antigo prédio municipal para recebê-lo. O encanto do novo museu começa no contraste do velho casarão em estilo clássico com seu conteúdo, a obra de um dos artistas mais modernos e anticonvencionais em atividade. Tomi Ungerer pertence a uma linhagem que tem origens remotas no francês Daumier e no inglês Hogarth, mas é um fenomeno do século 20: gente como Saul Steinberg, George Grosz, André François, Ronald Searle e poucos outros entre os quais, sem dúvida, o nosso Millôr que fizeram do cartum uma arte, e uma arma, superiores. Tomi Ungerer talvez seja, de todos eles (com a possível exceção de Grosz, que flagrou a inevitabilidade do nazismo em ácidas caricaturas da alta burguesia alemã) o mais impiedoso na sua crítica social. E na sua misantropia, embora o museu seja dedicado em grande parte às suas ilustrações para livros infantis, além dos brinquedos, e estivesse cheio de crianças no dia em que o visitamos. Não há salas proibidas para menores no museu, mas notamos um sutil interferência do pessoal da casa no trânsito das visitas para evitar que as crianças vissem outra parte importante da obra de Ungerer, seus desenhos eróticos, com uma certa ênfase em aparelhos sado-masoquistas.
Na catedral de Estrasburgo há um famoso relógio astronômico, um mecanismo enorme que além das horas mostra os dias da semana, cada um com seu deus mitológico correspondente, o mês, os anos (inclusive os bissextos), o tempo solar, as fases da lua e seus ciclos de eclipses, e os signos do Zodíaco. Todos os dias, às 12h30, o relógio dá um espetáculo: bonecos dos doze apóstolos desfilam diante de uma imagem de Jesus Cristo, acompanhados de uma música de realejo. Li um pouco sobre o relógio e descobri que o atual é a sua terceira versão desde o século 14. E que os outros dois pararam de funcionar, misteriosamente, em épocas de crise do cristianismo. E que na construção do atual relógio, no século 19, foi muito importante a contribuição de dois irmãos cujos descendentes cuidaram do seu funcionamento até há pouco tempo. E cujo nome era Ungerer! Não pude deixar de pensar nos desenhos de sexo mecanizado do Tomi, vistos na exposição. A família, aparentemente, tem um dom para engrenagens geniais. E não pude deixar de pensar que, com a crise de agora, deve ter gente imaginando que a qualquer momento este relógio também desista e os apóstolos parem de passar.
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