Em 2019, meses depois que Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, o governo da Noruega anunciou que deixaria de repassar recursos para o Fundo Amazônia, criado durante o governo Lula em 2008 para ajudar a bancar a preservação da floresta tropical. O impacto não seria pequeno: os noruegueses haviam sido responsáveis por mais de 90% do valor do fundo, que recebeu cerca de R$ 3 bilhões desde 2008. Com a vitória de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) na disputa presidencial em outubro do ano passado, o governo da Noruega prometeu retomar as doações para o fundo, cujos recursos são redistribuídos, em parte, a organizações que atuam na região amazônica.
A mudança de postura da Noruega é reveladora da visão internacional sobre o novo governo brasileiro: a gestão petista, historicamente mais próxima de ONGs ambientalistas e indigenistas do que os grupos à direita, deve incentivar, direta ou indiretamente, um protagonismo maior das organizações não-governamentais. E isso pode trazer mais problemas do que benefícios.
Crescimento acelerado
O Brasil tem 815.676 ONGs registradas de acordo com o levantamento mais recente do Mapa das OSCIPs organizado pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) – OSCIP é a sigla para Organizações da Sociedade Civil, o nome formal para o que se convencionou chamar de ONG. Desse total, 55.871 atuam na região Norte. O Mato Grosso, que também integra a Amazônia legal, tem 63.154. No cômputo geral, o aumento foi de 54% em uma década: em 2010, o Brasil tinha cerca de 530 mil OSCIPs.
Os dados não são totalmente precisos porque incluem um grande número de igrejas, o que foge à definição clássica de ONG. Por outro lado, existem milhares de organizações não-governamentais que não se registraram como OSCIP e, portanto, não entram na classificação do IPEA. De qualquer forma, os números ajudam a dimensionar o tamanho do desafio que é fiscalizar o funcionamento dessas entidades, muitas das quais são financiadas por governos estrangeiros.
O dinheiro vem de fora
Um exemplo do poder das ONGs na Amazônia é o papel exercido pelo Instituto Socioambiental (ISA). Fundada em 1994, a entidade se tornou uma das principais influências no debate público sobre o tema.
Uma análise das contas do instituto mostra que a maior parte do dinheiro vem de fora do país. Em 2020, o ISA teve uma receita de R$ 67, 9 milhões de reais. Desses recursos, R$ 59, 5 milhões (87,6%) vieram de fontes estrangeiras, segundo o balanço da entidade.
Entre os principais financiadores do ISA estão o governo da Noruega, a União Europeia e a CAFOD, um braço da Igreja Católica no Reino Unido. O Greenpeace, a OAK Foundation, a Procter & Gamble e a Penguin Random House também estão entre os doadores.
Mas o ISA não é uma exceção – várias outras organizações não-governamentais se sustentam com dinheiro estrangeiro. Por exemplo: em 2021, o Instituto Clima e Sociedade tinha um saldo de R$ 166,8 milhões obtidos em doações. Destes, mais de 99% vieram de fora do Brasil. A lista inclui os governos da Alemanha e do Reino Unido, além de fundações de empresas como o grupo americano Walmart e a sueca IKEA. Não é exagero afirmar que, sem a injeção de recursos estrangeiros, a ONG teria muitas dificuldades em sobreviver.
Uma terceira ONG que atua na Amazônia, o Imazon, teve em 2020 receitas de R$ 13,6 milhões. O segundo maior doador da entidade é o próprio Instituto Clima e Sociedade. O número 1 da lista é o governo da Noruega.
Caixa bilionário
Oficialmente, o Fundo Amazônia lida apenas com questões de meio ambiente e desenvolvimento econômico sustentável e iniciativas de “zoneamento ecológico-econômico, ordenamento territorial e regularização fundiária.”
Desde que foi criado, o fundo já financiou 102 projetos e aplicou um total de R$ 1,7 bilhão (ainda há R$ 1,5 bilhão em caixa). Enquanto 93,8% do total de doações recebidas desde 2008 veio do governo da Noruega, o governo alemão aportou 5,7%.
Apenas por meio de um de seus braços, a Norad, o governo norueguês financiou entre 2001 e 2021 574 projetos no Brasil, com repasses que somam aproximadamente R$ 5,7 bilhões. Os dados foram obtidos nos balanços anuais das próprias organizações citadas. Neles, as organizações divulgam o total de receitas e despesas do ano anterior. A maioria traz apenas uma descrição genérica dos projetos — ou nem isso.
Falta de transparência de ONGs da Amazônia
Como os números deixam claro, uma parcela significativa das ONGs mais influentes que atuam na Amazônia sobrevive de recursos públicos, enquanto outras se alimentam de doações estrangeiras.
No primeiro caso, o maior risco é o da corrupção. Quinze anos atrás, a CPI das ONGs, no Senado, investigou o desvio de recursos públicos por meio de repasses a essas organizações. Inicialmente, o foco eram atos de corrupção cometidos durante o governo Lula. Mas o período investigado foi expandido e passou a abarcar de 1999 a 2009. Com um volume extenso de denúncias a apurar, a CPI durou mais de três anos, mas acabou se encerrando sem que um relatório final fosse aprovado.
No segundo caso, o maior problema é a possibilidade de governos e entidades estrangeiras tentarem interferir na soberania brasileira. O próprio relatório final da CPI das ONGs inclui uma manifestação do Ministério da Defesa segundo a qual as ONGs que atuam na Amazônia “recebem apoio da mídia internacional, com o intuito de restringir a presença e a legitimidade do Estado Brasileiro na região amazônica."
E a Amazônia parece ser mesmo o foco dos recursos estrangeiros que abastecem essas organizações com sede no Brasil. Lá, longe dos holofotes, muitas delas alegam que promovem ações com os objetivos de prestar assistência aos indígenas, assegurar a preservação das culturas tradicionais e proteger a floresta.
Joio e trigo
Para o antropólogo Edward Luz, que atua na causa indígena, as organizações não-governamentais não devem ser colocadas em um só balaio. Ele diz que muitas ONGs presentes na Amazônia fazem um trabalho sério e que permite um monitoramento adequado de suas ações. Ele menciona como exemplo o Projeto Tamar, que busca proteger as tartarugas marinhas. “Essas são ONGs com baixíssimo potencial de articulação geopolítica. O máximo que elas vão poder fazer é articular para uma nova unidade de conservação, pedir recursos lá fora”, ele diz, antes de complementar: “Nesse caso, o Estado brasileiro consegue monitorar com alto grau de transparência e monitoramento quantas tartarugas foram salvas.”
O problema, diz ele, são as ONGs que usam as minorias, como os indígenas, para promover interesses ocultos. "Não se consegue saber se o dinheiro que veio de Bruxelas ou Paris vai ser usado para resgatar a identidade dos
indígenas, comprar votos deles ou criar uma nova terra indígena no Brasil”, explica Edward. E, como antropólogo que já atuou para a Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) em processos de demarcação de terras indígenas, ele tem experiência no assunto.
Para ilustrar seu argumento, Edward menciona a paralisação da construção da Ferrogrão, ferrovia que permitirá um escoamento mais rápido da soja produzida no Mato Grosso. Se sair do papel, a ferrovia correrá junto à BR-163, praticamente sem desmatamento. Ainda assim, o ISA articulou protestos e ações de lobby contra a iniciativa. “O ISA recebeu milhões de dólares para impedir a construção dessa rodovia usando seus instrumentos socioambientais”, diz ele. A ISA contesta a informação e disse, em nota, que “nunca recebeu recursos para atuar de forma contrária ao projeto da Ferrogão”.
Ex-funcionária da Funai e doutora em desenvolvimento sustentável, Josiana Santos diz que a atuação das ONGs na Amazônia por vezes torna os indígenas cronicamente dependentes. Por isso, uma redução da influência dessas organizações junto aos indígenas — embora desejável — precisa ser gradual. “Tirar as ONGs de indígenas que dependem delas em tudo seria um processo de desmame. Fazer com que eles entendam que precisam ter autonomia, protagonismo e desenvolver um meio de sobrevivência sem essas entidades é algo que se faz necessário”, diz ela.
Na opinião de Josiana, não é por acidente que ONGs acabam tornando os indígenas dependentes. “Quanto mais dependente as comunidades indígenas são, melhor é para elas [as organizações não-governamentais], até porque assim elas conseguem mostrar a vulnerabilidade e atrair financiadores”, explica.
Proposta relegada
O relatório final da CPI das ONGs, que tinha quase 1.500 páginas e foi elaborado pelo então senador Inácio Arruda (PCdoB-CE), afirmava que a legislação sobre as organizações não-governamentais precisava ser aprimorada para que houvesse mais transparência. “É preciso avançar na estruturação e na criação de mecanismos para que o Estado possa conseguir fiscalizar e verificar a efetividade dos convênios celebrados, o que também depende de um marco regulatório novo e abrangente”, dizia o texto.
Edward Luz acredita que, mais de uma década depois, quase nada mudou: o Brasil continua despreparado para lidar de forma adequada com os abusos cometidos por (ou por meio de) ONGs. “Nenhuma nova legislação ou norma técnica do governo federal foi lançada neste sentido”, afirma. Para ele, o Executivo precisa ampliar sua capacidade de inteligência para identificar quais ONGs estão sendo usadas para praticar a corrupção e defender interesses estrangeiros. Ele também defende a criação de uma nova CPI das ONGs, sem prazo para acabar. Sem isso, ele afirma, a soberania do país na região amazônica continuará ameaçada.
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