A falta de obstáculos à politização da cúpula do Judiciário, cujos abusos seguem incontestados pelo Senado, normalizou no Brasil uma realidade pouco comum anos atrás: membros do Supremo Tribunal Federal (STF) e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) se sentem confortáveis para escancarar publicamente suas posições políticas.
A tendência atingiu seu ápice na última quarta-feira (12), com o ministro do Supremo Luís Roberto Barroso manifestando explicitamente que atuou, enquanto juiz, contra a ascensão do bolsonarismo. Ante a reação popular, Barroso se desculpou negando a literalidade da fala. "Na verdade me referia ao extremismo golpista e violento", afirmou.
Pedro Moreira, doutor em Filosofia do Direito pela Universidad Autónoma de Madrid, destaca o fato de que Barroso "não deseja preservar nem mesmo a aparência de imparcialidade". "O comportamento dele, inclusive estético, é similar ao de um político em comício. Portanto, contraria qualquer princípio de prudência, decoro, independência e imparcialidade, todos previstos no Código de Ética da Magistratura. Em um estado de coisas normal, em que os órgãos de controle se comportassem com independência, e o parlamento com firmeza e dignidade, uma postura como essa seria punível. No Brasil, creio que Barroso não sofrerá nem mesmo um constrangimento acadêmico relevante. Como é um homem importante, amanhã estará dando palestra para juízes", ironiza.
Para Moreira, "todo o contexto em que ocorre a fala do ministro Barroso é constrangedor". "Primeiro, ele está em um evento ideologicamente orientado. Segundo, ele está tentando responder às vaias de uma turma que ele parece reconhecer como sua. Terceiro, ele, para agradar a turba, acaba reconhecendo o que a esta altura ninguém poderia mais duvidar: Barroso não é um julgador imparcial. E, pelo que pensa e escreve, sequer poderia sê-lo."
Esta não é a primeira oportunidade em que Barroso deixa suas opiniões políticas vazarem para o público. O histórico de falas do ministro nesse sentido é farto.
E Barroso não é o único ministro que exibe sem pudor seus posicionamentos. Em fevereiro, reportagem da Gazeta do Povo mostrou como Alexandre de Moraes, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Cármen Lúcia e Dias Toffoli já explicitaram suas convicções políticas – e, em alguns casos, até partidárias – por meio de discursos e presenças em eventos. A exposição de opiniões toca, muitas vezes, em questões relacionadas a julgamentos que ainda estão tramitando no STF.
No começo de fevereiro, Lewandowski foi a um evento do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), onde deixou clara sua simpatia pela organização extremista. Cármen Lúcia já assinou carta que sinalizava opinião favorável à legalização do aborto após uma reunião com um grupo de mulheres politicamente engajadas em pautas da esquerda. Em fevereiro deste ano, Gilmar Mendes afirmou que o Brasil "estava sendo governado por uma gente do porão" até o ano passado.
Comunicação da cúpula do Judiciário se aproxima do marketing político
A falta de pudor em exibir a politização fica evidente também na recente estratégia de comunicação dos tribunais, que têm usado o marketing político para reforçar na opinião pública as posições que adotam.
Anos atrás, as campanhas publicitárias das cortes superiores do país tinham, em sua grande maioria, um propósito informativo ou educativo e se caracterizavam pela sobriedade formal. Com o envolvimento crescente da cúpula do Judiciário na vida política do país, essa realidade ficou para trás.
Na segunda-feira da semana passada (10), o TSE estreou a campanha "Na Hora da Verdade, a Democracia Fala Mais Alto", um spot publicitário de 30 segundos que apresenta uma batalha de rappers. Na peça, uma rapper mulher com a palavra "Democracia" estampada em sua blusa derrota um rapper homem que representa a ditadura.
"Um MC representa a democracia e o outro, a ditadura. A clara superioridade da democracia fica evidenciada nas rimas de seu representante, que conquista a adesão da plateia no final", descreve no projeto enviado ao TSE a Madre Mia Filmes, produtora responsável pelo spot, que custou R$ 400 mil aos cofres públicos.
Não é difícil associar a campanha com os frequentes discursos em que ministros usam a oposição entre "democracia" e "extremismo" para condenar um amplo espectro de opiniões da direita como "antidemocrático" – justificando inclusive prisões e censura com base nessas categorias. Na própria diplomação de Lula em dezembro de 2022, Alexandre de Moraes disse que aquele evento atestava "a vitória plena, incontestável da democracia e do Estado de direito contra os ataques antidemocráticos, contra a desinformação e contra o discurso de ódio proferidos por diversos grupos organizados".
A letra da música da propaganda, aliás, tem semelhanças evidentes com o mantra da liberdade de expressão que figura frequentemente em votos de Alexandre de Moraes. "Liberdade de expressão não é licença para espalhar mentira, ódio, golpe e desavença", canta a rapper representante da democracia na peça publicitária, citando Moraes quase literalmente.
Para o advogado especialista em compliance Jorge Derviche Casagrande, o desprezo por um grupo de eleitores em nome da preservação da ordem política desejada pela elite estatal é o contrário do comportamento democrático. "Essa campanha do TSE é uma autodefesa do sistema. Eles estão jogando no lixo o voto das pessoas, a vontade popular, e estão dizendo que isso é democracia", afirma. "Eles estão fazendo uso dos órgãos oficiais para reescrever a história e tentar promover uma narrativa pró-sistema", acrescenta.
Outras iniciativas do Judiciário demonstram seu afã de angariar prestígio como ator político. Em janeiro, o STF fez a campanha "Democracia Inalabada", que vendeu o Supremo como órgão defensor da democracia brasileira contra os extremistas, logo após o atentado do 8 de janeiro.
O Supremo também lançou, em 2021, o Programa de Combate à Desinformação, cujo principal objetivo é evitar que fatos supostamente desinformativos sobre a Corte venham a público. A tendência ideológica de participantes dessa iniciativa já foi revelada pela Gazeta do Povo.
Recentemente, o próprio ministro Barroso sinalizou preocupação com a imagem que o povo brasileiro tem do Judiciário. "A gente tem que fazer um esforço na recuperação da imagem do Poder Judiciário, explicando melhor o que a gente faz, estabelecendo uma melhor comunicação com a sociedade, melhorando a linguagem", afirmou em um evento.
Para Casagrande, a multiplicidade de iniciativas da cúpula do Judiciário para se apresentar como defensora da democracia revela, em si mesma, uma veia antidemocrática. "Esses mecanismos de denúncia de fake news, essa própria campanha pró-democracia, tudo isso por si só já demonstra que nós estamos vivendo uma patologia da democracia. E essa patologia parte do poder instituído, quando ele diz: 'Olha, você precisa me respeitar, porque eu sou o poder instituído'. Se o poder é instituído pelo povo, o povo não pode debater esse poder, discutir até onde ele pode ir? Aí o poder responde: 'Não. Se questionar o que eu faço, você é antidemocrático'. Se isso acontece, quem é antidemocrático é o poder instituído, que está querendo, de forma violenta e insidiosa, através de propaganda digna de regimes autoritários, fazer valer a sua autoridade", comenta.
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