Cerca de 2,9 milhões de brasileiros consomem cigarros eletrônicos regularmente. A conclusão é de uma pesquisa da Inteligência em Pesquisa e Consultoria (Ipec), com entrevistas feitas entre julho e outubro de 2023. O número é quase seis vezes maior em relação ao primeiro levantamento do gênero, realizado em 2018, quando 499 mil consumidores declararam que haviam tido contato com o produto nos 30 dias anteriores à pesquisa.
Os dados de 2023 indicam ainda que cerca de 6,3 milhões de adultos que são fumantes de cigarros industrializados já tiveram ao menos um contato na vida com estes dispositivos eletrônicos, o equivalente a 29% do total de fumantes. Em 2019, esse número era de 3,6 milhões, segundo o Ipec.
Essas pessoas têm acesso aos cigarros eletrônicos apesar de eles serem proibidos no Brasil. Em 2009, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu que esses produtos não podem ser comercializados em território nacional. A decisão se mantém desde então.
Consulta pública vai reavaliar proibição
Em dezembro de 2023, uma consulta pública foi aberta para reavaliar a questão. Ela permanece ativa até dia 9 de fevereiro. “Qualquer pessoa interessada poderá enviar contribuições ou comentários sobre a proposta de regulamento, dentro desse prazo de 60 dias. Ao fim do período de sugestões, a Anvisa irá avaliar as contribuições e divulgar o relatório da consulta pública no seu portal”, informa a agência, via assessoria de imprensa.
Ainda assim, os dispositivos eletrônicos para fumar são facilmente encontrados em lojas de aeroportos, em shoppings, em barracas de praia – e no e-commerce. Criados em 2003, os diferentes aparelhos que vaporizam soluções líquidas contendo nicotina são comercializados em mais de 80 países, enquanto aproximadamente 30 os proíbem, como o Brasil.
Nas nações onde eles são liberados, como Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Portugal, Itália e Japão, existem regras para o conteúdo dos aparelhos, normas para a comercialização e sanções previstas para casos de descumprimento das determinações.
No Reino Unido, onde os modelos eletrônicos são utilizados como medida de saúde pública para pacientes que não conseguem abandonar os cigarros tradicionais, o Departamento de Saúde Pública identificou uma queda na taxa de tabagismo, de 16% para 11%. E concluiu em 2015 que os aparelhos podem ser até 95% menos prejudiciais do que os cigarros industrializados convencionais. No Brasil, o debate sobre a liberação ou não das vendas é acalorado e divide especialistas.
A favor da proibição
“O cigarro eletrônico é uma forma moderna, com uma nova embalagem, do mesmo produto”, afirma Vera Lucia Gomes Borges, tecnologista da Divisão de Controle do Tabagismo e Outros Fatores de Risco (Conprev) do Instituto Nacional de Câncer (Inca).
“Ele não reduz a exposição à nicotina, tem um apelo perigoso para os jovens e, ao contrário do que a indústria diz, não funciona para reduzir os danos provocados pelo tabagismo”. Para ela, a proibição é a decisão correta, e deveria ser mantida. “O Brasil adota políticas públicas eficazes para reduzir danos desde a década de 1990”, reforça Ricardo Meirelles, presidente da Comissão Antitabaco da Associação Médica Brasileira (AMB).
“O cigarro eletrônico é tão perigoso que já tem uma doença para chamar de sua, o Evali”, diz ele, fazendo referência a uma nova modalidade de lesão pulmonar associada ao uso de cigarro eletrônico, identificada pela primeira vez em 2019, nos Estados Unidos. A "crise Evali" foi causada em em 2019 pela utilização do acetato de vitamina E como diluente do THC – princípio ativo da maconha – em vaporizadores ilegais ou adulterados. A substância é proibida nos cigarros eletrônicos comercializados legalmente no país.
A respeito do contrabando, a solução, para Meirelles, é reforçar o controle. “Estes produtos são, em grande parte, do exterior. Entram por portos e aeroportos. É preciso melhorar a fiscalização e fazer valer a regulamentação atual, que prevê a proibição.”
A atuação contra os produtos ilegais deveria ser acompanhada de ações educativas. “O que falta são as medidas de conscientização da população, principalmente os jovens. É preciso manter a proibição, com conscientização, para que as pessoas entendam que o cigarro eletrônico faz mal. Parece indolor, tem um sabor agradável, não tem cheiro, mas pode ser até mais prejudicial que o cigarro tradicional. A nicotina é uma droga muito poderosa.”
Contra a proibição
Alessandra Bastos Soares, farmacêutica com atuação como responsável técnica em empresas do setor farmacêutico e ex-diretora da Anvisa, é favorável a uma regulamentação que permita controlar o que é comercializado e como as ações de marketing e comunicação são realizadas – além de tentar limitar o acesso a menores de idade. “A Anvisa está sendo negacionista ao se posicionar pela manutenção da proibição desse produto. A regra existe: a proibição. Mas ela não funciona. E uma regra que não funciona não serve para nada”, critica.
“Existe um grande volume de evidências científicas que apontam que o cigarro eletrônico é, sim, uma ferramenta de redução de danos para os consumidores de nicotina. Temos diante de nós uma crise sanitária, provocada pelo consumo de um produto sobre o qual não existe nenhuma norma, nenhum controle.”
A regulamentação e a comercialização de produtos já liberados em mais de 80 países poderia também gerar o recolhimento de impostos. “Sabemos que o vício em nicotina é um problema grave. Mas outros produtos que representam redução de danos, como cerveja sem álcool e refrigerantes sem açúcar, são autorizados e regulamentados. Enquanto isso, as pessoas não sabem o que estão ingerindo. O poder público está se omitindo da função de fiscalizar e regulamentar.”
Para David Sweanor, especialista canadense em controle do tabaco, premiado pela Organização Panamericana da Saúde da Organização Mundial da Saúde (OMS), a redução de riscos proporcionada pelos cigarros eletrônicos é comprovada. “Os cigarros são um produto extraordinariamente mortal porque exigem a inalação repetida de fumaça, é essa fumaça que causa o enorme nível de mortes e doenças”, afirma - para ele, a nicotina, presente nos cigarros eletrônicos, representa um risco menor para a saúde.
Sweanor alega que países que regulamentaram os modelos eletrônicos experimentaram a queda no consumo de cigarros, caso de Japão, Suécia, Noruega e Nova Zelândia. “Se conseguirmos capacitar as pessoas que fumam cigarros para substituí-los por alternativas não combustíveis, como o cigarro eletrônico, alcançaríamos um dos maiores avanços na história da saúde pública.”
Metodologia da pesquisa Ipec
Pesquisa quantitativa com 51.575 entrevistas, realizada com a população brasileira de 18 a 64 anos, residente em áreas urbanas de municípios com 20 mil habitantes ou mais. Essa amostra representa 77% dos brasileiros e brasileiras com idade entre 18 a 64 anos. As entrevistas foram realizadas pessoalmente.
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