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Na CPI da Covid no Senado, a secretária de Gestão do Trabalho e da Educação do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, foi criticada por ter afirmado, em uma conversa privada, que todos os tapetes da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) têm a imagem do revolucionário comunista Che Guevara. Ela também gerou reações variadas por, na mesma conversa, ter dito que havia um "pênis inflável" na porta da organização. Embora a secretária provavelmente tenha usado de hipérboles, ela posteriormente enviou à Gazeta do Povo uma fotografia que parece comprovar sua segunda alegação. A imagem mostra uma campanha de prevenção ao HIV na entrada da Fiocruz, no Rio de Janeiro. Independentemente das polêmicas levantadas na CPI, não é possível dizer que a fundação é um órgão puramente técnico, imune a influências político-ideológicas.
A tendência à esquerda começa no cargo mais alto da fundação: a atual presidente é Nísia Trindade Lima, que tem um histórico de ligação com o Partido dos Trabalhadores (PT). Ela foi eleita para o comando da Fiocruz em 2017 e, no início deste ano, reconduzida ao cargo. Se a votação for um termômetro da orientação ideológica dos funcionários da Fundação, a tendência é clara: Nísia teve 87% dos votos válidos na disputa deste ano. Os deputados Paulo Teixeira, Afonso Florence e Chico D'Angelo, todos do PT, chegaram a se reunir com o então ministro da Saúde, Ricardo Barros, para pedir que ela fosse nomeada - apesar de ter obtido mais votos, ela poderia, em tese, ser preterida pelo presidente Michel Temer, que poderia ter optado por qualquer um dos três mais votados.
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Curiosamente, Nísia não tem formação acadêmica na área de ciências biológicas ou medicina: ela possui graduação e doutorado em Sociologia, com mestrado em Ciência Política. O segundo colocado na eleição, Rivaldo Venâncio, é outro militante de esquerda – que protestou contra a prisão do ex-presidente Lula em 2018.
Mais recentemente, já sob o governo Bolsonaro, a entidade deu outras pistas de suas preferências ideológicas. Dentre os projetos mantidos pela fundação, está ainda o Agenda Jovem – Fiocruz, que produz debates periódicos. Um dos mais recentes tinha como tema “Como a juventude resiste e se reinventa", e teve a participação de Júlia Aguiar, uma das diretoras da União Nacional dos Estudantes (UNE). O mais grave: o projeto Agenda Jovem é uma parceria da Fiocruz com o Levante Popular da Juventude, uma organização abertamente marxista. Em sua página na internet, o Levante se define desta maneira: “Nossa inspiração tem vínculo profundo com a Esquerda Revolucionária que por meio da construção de um marxismo vivo deu origem à luta armada contra a ditadura no Brasil, à Teologia da Libertação, à revolução cubana, à revolução nicaraguense e outras experiências de libertação nacional na Ásia e África”. Isto não impediu a Fiocruz de estreitar os laços com o Levante Popular.
Em um dos eventos recentes, publicados pela página do Levante Popular da Juventude, o coordenador de Cooperação Social da Fiocruz, Leonídio Sousa, escancarou o objetivo do projeto: "Já estamos estabelecendo uma parceria de alguns anos com o Levante Popular da Juventude e fazendo um avanço significativo para dentro da Fiocruz, inclusive, na aproximação entre os campos da saúde e juventude, mas uma aproximação não somente na construção de campos de conhecimento, mas também da ação política", disse Sousa. Neste ano, as duas entidades abriram um edital para, juntas, publicarem um livro.
O Levante Popular da Juventude se notabilizou pelos protestos agressivos. O grupo promove o que chama de "escrachos" contra seus adversários. No começo da década passada, o Levante depredou e pichou casas de supostos torturadores do regime militar, geralmente com os dizeres "Aqui mora um torturador". Em 2018, a organização atirou tinta sobre o prédio em que mora a ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal. O grupo também já pichou a casa de João Doria (PSDB) quando ele era prefeito de São Paulo. Em 2016, o Levante atirou glitter sobre o então deputado federal Jair Bolsonaro. Em 2012, o grupo havia recebido das mãos da presidente Dilma Rousseff uma menção honrosa no Prêmio de Direitos Humanos da Presidência da República.
Fake news contra Bolsonaro
O posicionamento ideológico também parte dos pesquisadores da Fundação. Há três meses, a Fiocruz realizou uma transmissão ao vivo em que os pesquisadores Sonia Fleury e Assis Mafort debateram o “federalismo brasileiro” e o “contrapoder na Covid-19”. Em sua fala, além de definir o governo Bolsonaro como “autoritário” e “negacionista”, Sonia afirmou que o presidente tem o apoio das milícias. "Parte de apoio de suas bases (...) são os fanáticos bolsonaristas e também os neopentecostais, as milícias, e todos esses grupos que o apoiam e que exercem um certo controle moral ou coercitivo sobre a população", disse ela. A pesquisadora da Fiocruz disse ainda que a família Bolsonaro difundiu o boato de que a vacina contra a Covid-19 carrega um chip – informação que é, de fato, falsa, mas que não foi divulgada pelo presidente ou seus familiares. Sonia criticou “as várias formas absurdas que se usam aí na família do Bolsonaro para atacar a China, atacar a vacina, dizer que o vírus foi produzido lá, que a vacina tem chip, enfim, uma série dessas fake news que foram divulgadas".
A Fiocruz ainda é uma das organizadoras de uma série de debates batizada de “Roda de Conversa Universitárixs e faveladxs” - o uso do “x” em vez do “o” é uma tentativa de adotar uma linguagem neutra, que supostamente não agride as pessoas transexuais.
Linguajar de esquerda em congresso da Fiocruz
Outro termômetro da orientação ideológica da Fiocruz é a ata do sétimo e mais recente congresso interno da entidade, realizado em 2017 – já sob a gestão da atual presidente, Nísia Trindade Lima. O documento final contém diretrizes para a atuação da fundação nos anos seguintes. E inclui trechos com um claro linguajar de esquerda, com ataques ao “neo-liberalismo” e ao “capital rentista”. Escrevendo durante o governo Temer, no ano seguinte ao impeachment de Dilma Rousseff, o comando da Fiocruz afirmou: “A crise econômica, o deslocamento do discurso de hiperglobalização para nacionalismos protecionistas, a exacerbação de fundamentalismos, intolerâncias e conflitos e, como grande determinante disso tudo, o reforço do neo-liberalismo e domínio do capital rentista e financeiro, são claramente contraditórios com os valores da Agenda 2030”. A Agenda 2030 é uma série de objetivos traçados pela Organização das Nações Unidas para serem atingidos até o ano de 2030.
O documento também lamenta o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff e a política fiscal do governo Michel Temer: “Após anos de fortalecimento da democracia e das instituições democráticas, o país viveu a interrupção de um mandato presidencial eleito pela maioria e, em seguida, a radicalização de um programa de governo focado no ajuste fiscal”, além de criticar “o avanço de projetos neoliberais” mundo afora.
Uma das diretrizes aprovadas no congresso de 2017 inclui ataques à “elite brasileira e internacional”. No trecho, a Fiocruz decide “Participar da luta pela reorientação da atual política econômica geradora de iniquidades e contribuir para a elaboração de políticas e programas de Saúde que tenham como pressuposto uma política econômica e fiscal progressiva e inclusiva, orientada para a diminuição das desigualdades sociais e para a promoção do desenvolvimento econômico, tornando claro, para a população, o que lhe está sendo subtraído pela elite brasileira e internacional; e divulgar e apoiar a proposta de efetivação de auditoria independente e cidadã da dívida pública”.
Abastecida com recursos do Ministério da Saúde, a Fiocruz foi fundada há 121 anos com a missão de produzir soro e vacina contra a peste bubônica. Era o Instituto Soroterápico Federal. Já nos seus primeiros anos de existência, graças ao trabalho do cientista que hoje dá nome à entidade, Oswaldo Cruz, a instituição expandiu sua atuação, mas manteve a pesquisa para o combate às doenças, sobretudo as tropicais – que não eram prioridade para pesquisadores da Europa e dos Estados Unidos. O orçamento da fundação para 2021 é de R$ 5,1 bilhões.
A reportagem da Gazeta do Povo procurou a instituição, mas não obteve retorno até a publicação da reportagem.