Governo investirá R$ 4 bilhões no enfrentamento à droga| Foto: Jonathan Campos/Gazeta do Povo

OPINIÃO

Mauri König, jornalista da Gazeta do Povo.

A questão é o depois

Internar drogaditos à força não resolve. Há boas intenções na proposta do governo, ainda que soe como escape ao custo político da omissão. A luta contra o crack está coberta de méritos, sem dúvidas, mas onde entra a parte mais interessada? Para qual família voltará o drogadito depois da internação, compulsória ou não?

Meu pai é alcoolista. Deus sabe o quanto eu, minha mãe e minhas irmãs tentamos fazê-lo largar a bebida. As duas primeiras internações foram consentidas. Fugiu de ambas. As duas seguintes foram compulsórias. Fugiu de novo. Minha mãe recorreu então a fórmulas mágicas para misturar na comida. Perdeu a luta para os efeitos insidiosos da dependência química.

Em 1990, dei um depoimento num grupo dos Alcoólicos Anônimos de Matinhos. Falei da felicidade de vê-lo livre da bebida, de tê-lo novamente como pai. Chorei. Muitos ali choraram. Não deu um ano, meu pai trocou o AA pela bebida. Com o tempo, reduzi as conversas com ele somente ao essencial. Hoje, aos 72 anos, vive sob a tutela de minha mãe e de uma de minhas irmãs. Nesse caso, nem a internação compulsória resolveu.

O álcool surgiu para meu pai como um lenitivo para as frustrações, assim como se dá com muitos drogaditos. Em alguma medida álcool e crack se assemelham. Não sou contra a internação compulsória. Quem conhece a realidade das ruas sabe que muitas vezes ela é necessária. Mas, no caso dos jovens, o mais importante é provar porque vale a pena largar a droga. Como? Dando-lhes uma perspectiva de futuro. Educação, emprego e reconhecimento é um bom começo.

Se numa família presente a recuperação é difícil, pior quando falta a quem recorrer. O pós-internamento é que dirá se valeu a pena investir R$ 4 bilhões na luta contra o crack. Tão importante quanto o presente do drogadito é o seu futuro.

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O novo plano de enfrentamento ao uso de crack e outras drogas, lançado na quarta-feira pelo governo federal, define duas frentes de ação para o tratamento de dependentes químicos. Além de prever a internação compulsória, determinada pela Justiça e sem o consentimento do usuário, o planejamento inclui a criação de 308 consultórios de rua (ambulatórios móveis formados por médicos, enfermeiros, psicólogos e lideranças locais, que tratam de pessoas em situação de risco) até 2014. Ao todo, o governo deve investir R$ 4 bilhões no programa de combate às drogas.

A Lei 10.216/01, que estabelece as diretrizes da assistência à saúde mental, prevê três tipos de internação psiquiátrica: voluntária, que se dá com o consentimento do usuários; involuntária, sem consentimento e a pedido de terceiros; e compulsória, determinada pela Justiça. "O que foi estabelecido em 2001 está vigente. A internação compulsória é uma solução simplista para um problema muito complexo. Resolve o problema da sociedade, mas não o da pessoa", afirma a coordenadora do Programa de Saúde Mental da prefeitura de Curitiba, Cristiane Venetikides.

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O Consultório de Rua de Curitiba existe há um ano e meio. Ele é composto por uma equipe que sai às ruas e atende usuários de drogas, com foco na proteção à saúde. O objetivo principal é estabelecer um vínculo e fazer com que as pessoas busquem ajuda por conta própria. "Na medida que encontram pessoas em risco clínico e médico, é possível indicar internação involuntária. Mas não é a regra", afirma Cristiane. Quanto aos riscos sociais do uso de drogas, eles são uma questão de polícia e não de saúde, conforme Cristiane.

Na avaliação do psicólogo Dionísio Banaszewski, que se dedica à área há mais de 20 anos, a internação compulsória pode ser eficiente, se aplicada de forma coerente. "De certa forma, é como o salvamento de alguém que está se afogando. A pessoa intoxicada só poderá decidir por si quando retomar o controle e a consciência", diz. O importante, segundo Ba­­nas­zewski, é dar condições de recuperação às pessoas. "Tivemos hospitais psiquiátricos que funcionaram como verdadeiros depósitos humanos. O trabalho psicológico precisa ser sério nessa recuperação", diz.

Por outro lado, o secretário nacional adjunto da campanha "Criança Não é de Rua", Adriano de Holanda Ribeiro, afirma que 98% dos adultos ou adolescentes de Fortaleza que se assumiram doentes e passaram por atendimento psicológico sofreram reincidências. "Mesmo quando há interesse, acontecem recaídas. Por esse motivo, a internação involuntária é ineficaz", diz. Ribeiro critica a adoção de medidas, como no Rio de Janeiro, em que policiais e a guarda municipal realizam as abordagens. "Eles não estão preparados para o trabalho e excessos acabam acontecendo. As próprias crianças denunciam", conta.

Diferenças

Regras para adultos e crianças

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Existem diferenças na aplicação da internação compulsória para adultos e para crianças e adolescentes, explica o presidente da Comissão de Direito à Saúde da Ordem dos Advogados do Brasil Seção Paraná, Silvio Felipe Guidi. Quem tem mais de 18 anos não pode ser obrigado a se internar, exceto em casos que envolvem risco de morte. "Quando se faz uso exagerado de substâncias tóxicas, colocando a vida em risco, o Estado tem o dever de intervir", diz. No caso de crianças e adolescentes, o poder de intervenção é imediato. "Legalmente falando, eles não têm condições de responder por seus atos", explica. Para Adriano Ribeiro, da Campanha "Criança Não é de Rua", a experiência de trabalho mostra que esse tipo de ação não gera resultados positivos: é preciso oferecer perspectivas.