À medida que as eleições se aproximam, uma característica da esquerda brasileira contemporânea tem se manifestado de forma mais evidente: a tendência ao duplipensar.
No livro “1984”, de George Orwell, o duplipensar é um dos elementos do processo de lavagem cerebral pelo qual passam os cidadãos do estado totalitário controlado pelo Grande Irmão. Editorial de terça-feira (16) da Gazeta do Povo define “duplipensar” como “a técnica de incorporar duas ideias ou crenças contraditórias, incompatíveis uma com a outra, e levar a pessoa a acreditar em ambas”.
No Brasil, alguns políticos, juízes, formadores de opinião e meios de comunicação têm normalizado o duplipensar no debate público de diversas formas: defendem a democracia buscando cancelar as vozes dissonantes; acusam de fake news manipulando a verdade; ofendem religiões alegando que elas praticam discurso de ódio; promovem censura com o pretexto de salvaguardar a diversidade de visões de mundo.
De tão evidentes, certas contradições do duplipensar esquerdista acabaram dando origem a um chavão popular entre direitistas, que serve até de nome a algumas páginas de sátira nas redes sociais: “ódio do bem”.
Reportagens recentes da Gazeta do Povo mostram como o duplipensar virou uma marca da esquerda no debate público. Em janeiro deste ano, tachou-se de racista um texto de Antonio Risério contra o racismo; em julho, alegando preocupação com a situação da democracia no Brasil, ONGs pressionaram as redes sociais a fechar o cerco contra opiniões que divergem do que elas pregam; também em julho, sob o pretexto de defender a diversidade nas universidades, um grupo de estudantes impediu um vereador negro anticotas de se manifestar em uma universidade; em agosto, apoiadores de ditaduras celebraram e assinaram a carta sobre democracia.
André Gonçalves Fernandes, professor de Antropologia Filosófica e de Filosofia do Direito e pesquisador da Unicamp, diz que uma das características do duplipensar é renunciar à busca de uma verdade prática e procurar, em vez disso, a “acomodação da ideologia”. Com isso, diminui-se a crença na possibilidade de buscar o bem comum, o que enfraquece o próprio Estado de Direito.
“Você apaga por completo a noção de bem comum”, afirma. “Quando uma sociedade não busca mais o bem comum, virou uma sociedade atomizada, compartimentalizada, em que cada um começa a procurar suas próprias metas pessoais e vê o restante da sociedade não como uma comunidade, mas como uma espécie de grande serviço público ao seu dispor. O duplipensamento reforça isso”, conclui.
Justiça censura cartaz que associava comunismo a censura; na segurança pública, policiais são tratados como criminosos
Um fato da última semana é emblemático da tendência ao duplipensamento na esquerda. Na sexta-feira passada (12), a ex-deputada Manuela D’Ávila, do Partido Comunista do Brasil, chamou a atenção nas redes sociais contra um cartaz de publicidade gigante em Porto Alegre que associava o comunismo, entre outras coisas, à prática da censura. Como efeito disso, na segunda-feira (15), a Justiça censurou o cartaz, determinando a sua retirada.
Quase todos os conceitos que o cartaz associava ao comunismo são ou já foram publicamente defendidos por comunistas (alguns deles, pela própria ex-deputada) – por exemplo, a prática da censura, a legalização do aborto, o aumento dos impostos, o antipunitivismo, o desarmamento da população, a ideologia de gênero e o fortalecimento dos movimentos sociais do campo.
Outro foco comum do duplipensar no Brasil é o discurso sobre a segurança pública: em nome do combate à violência, teóricos de esquerda defendem a desmilitarização da polícia; para acabar com o narcotráfico, recomendam liberar as drogas.
Para Eduardo Matos de Alencar, doutor em Sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e autor do livro “De quem é o comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil” (2019), a tendência ao duplipensar é evidente em assuntos relacionados à violência.
“O exemplo mais flagrante foi chamar aquelas ações da polícia nas favelas cariocas de chacinas. E diziam: ‘mas morreram 21 bandidos e nenhum policial’, como se o fato de não morrer policial sugerisse que aqueles bandidos foram executados. O fato de não ter morrido policial é muito mais relacionado com a questão de como a polícia está usando a inteligência e a ação tática e estratégica adequadas”, explica Alencar.
No TSE, Alexandre de Moraes enquadra a liberdade de expressão
Na terça-feira (16), o novo presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Alexandre de Moraes, fez um discurso de posse citando alguns dos riscos que, na visão dele, a democracia brasileira enfrenta. O magistrado usou boa parte de seu tempo para enquadrar a liberdade de expressão no Brasil, fazendo uma demarcação exaustiva daquilo que, para ele, esta garantia constitucional não garante ao cidadão brasileiro.
Nas palavras do próprio Moraes, extraídas de diferentes momentos do discurso, a liberdade de expressão:
- não significa impunidade;
- não significa a impossibilidade de posterior análise e responsabilização por eventuais informações injuriosas, difamantes, mentirosas, fraudulentas;
- não permite a propagação de discursos de ódio, de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado democrático;
- não permite a realização de manifestações, sejam pessoais, sejam nas redes sociais ou por meio de entrevistas públicas, visando o rompimento do Estado de direito;
- não pode ser escudo protetivo para a prática de discursos de ódio, antidemocráticos, ameaças, agressões, violência, infrações penais e toda sorte de atividades ilícitas;
- não é liberdade de destruição da democracia, de destruição das instituições, de destruição da dignidade e da honra alheias;
- não é liberdade de propagação de discursos de ódio e preconceituosos;
- não permite a propagação de discursos de ódio e ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado de Direito.
Entre as expressões usadas por Moraes para delimitar o que se pode ou não dizer, há alguns conceitos vagos nos quais diferentes tipos de falas poderiam ser enquadrados, a depender da interpretação do juiz.
O especialista em liberdade de expressão Pedro Franco, mestre em história social da cultura pela PUC-Rio e em estudos interdisciplinares pela Universidade de Nova York, diz que um tipo de argumento muito comum com atributos de duplipensamento é o que se chama de “paradoxo da tolerância”: a ideia de que, se formos tolerantes com os intolerantes, eles vão prosperar, e a possibilidade da tolerância vai acabar. Para Franco, Moraes incorre nesse paradoxo.
“As pessoas falam, usando o paradoxo da tolerância: ‘Se a gente permite que certos discursos proliferem, eles vão prejudicar a democracia. A gente tem que suprimir esses discursos antes que eles tomem força’. É paradoxal, porque esse tipo de discurso também é prejudicial à democracia. A partir do ponto em que você coloca um lado do debate como ilegítimo, você está desincentivando o debate democrático. Você está prejudicando a democracia ao fazer isso. O grande paradoxo é que, tomando as premissas do Alexandre de Moraes como verdadeiras, o discurso dele deveria ser censurado, por estar prejudicando a democracia. Teríamos que censurar tudo o que corre o risco de prejudicar a democracia. E não dá para fazer isso”, diz.
Para o especialista, há um grave problema quando se normaliza no discurso público a ideia de que um lado representa a democracia e o outro representa a “frente antidemocrática”. “O que se está criando, na realidade, é um incentivo para as pessoas pararem de debater política: se um lado é ilegítimo, você precisa silenciar e derrotar aquele lado. Essa dicotomia é um incentivo para as pessoas pararem de debater”, afirma.
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