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"Dia histórico para a ciência brasileira. A Anvisa acaba de aprovar por maioria o uso emergencial da vacina do Butantan. Vitória da ciência", disse João Doria após a aprovação da Coronavac pela Anvisa, neste domingo (17). "A data de hoje entra pra história. Venceu a ciência", comemorou o deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ). "Xô trevas. Xô negacionismo. Xô charlatões. A luz da CIÊNCIA chegando via Butantan e Fiocruz!", afirmou o ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.
Há meses a ciência se tornou fonte de antagonismos ideológicos e peça do jogo político no Brasil. Mas, nos últimos dias, com as polêmicas e confusões em torno da vacinação contra o coronavírus, esse fenômeno ganhou ainda mais força.
Não só Doria, Maia e Mandetta, mas também celebridades como Felipe Neto e Luciano Huck insistem na palavra "ciência" para se contrapor ao chamado "negacionismo científico". Enquanto isso, muitos acusam essas personalidades de praticarem demagogia usando a ciência como plataforma.
No último dia 9, por exemplo, depois que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) cobrou alguns documentos para a aprovação da Coronavac, o secretário de Saúde do Estado de São Paulo, Jean Gorinchtey, fez uma afirmação controversa em uma entrevista: “Não é hora de nós sermos tão cientistas como estamos sendo agora”. A declaração foi recebida com ironia por críticos do governador de São Paulo, João Doria, que, para se opor a Bolsonaro, costuma dizer que está do lado da ciência.
No dia 13, Doria voltou a falar em ciência para antagonizar com bolsonaristas e pedir a aprovação da Coronavac: “Renomados cientistas declararam sua satisfação com a apresentação dos estudos clínicos de segurança e eficácia da vacina do Butantan. O apelo da ciência é pelo fim da politização e início da vacinação”, disse ele.
Como a polêmica sobre a ciência começou
A palavra “ciência” e suas derivadas se tornaram peças do jogo político no Brasil desde que, nos primeiros meses da pandemia, o então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, insistiu em seu uso para mandar indiretas para Bolsonaro. “Vamos nos mover pela ciência”, anunciou Mandetta em março. “Ciência, ciência. Não vamos perder o foco”, disse em abril. No fim do mesmo mês, após deixar a pasta da Saúde, o ex-ministro falou que Bolsonaro exonerou a ciência ao demiti-lo.
A insistência de Mandetta em posar como representante da ciência foi criticada até por cientistas, e o mantra, que passou a ser repetido por outras figuras, tornou-se objeto de ironia. Apoiadores de Bolsonaro nas redes sociais começaram a escrever a palavra "ciência" cheia de és e de enes, tentando espelhar o sotaque do ex-ministro. Mais recentemente, o principal alvo dessa ironia se tornou Doria, que quis tomar para si o papel de representante da ciência.
“Compras em Miami sem máscara, desgovernador? E a ‘CIÊÊNNCIA’???”, perguntou a deputada federal Carla Zambelli (PSL-SP) no fim de dezembro, quando Doria foi flagrado sem máscara numa loja na cidade norte-americana.
Outras figuras públicas que assumiram o mesmo papel também viraram alvos, como o biólogo Atila Iamarino. “Seria a ‘ciência - ciência - ci-ênnnnn-cia’ aliada ao ‘autoritarismo do bem’ em prol do fascismo (do bem) sanitário?”, questionou a advogada Claudia Wild em um tuíte recente com milhares de curtidas. A publicação fez referência a um artigo de Iamarino no jornal Folha de S.Paulo intitulado "Autoritarismo necessário", em que o autor defende a adoção de políticas públicas coercitivas para a vacinação.
O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), que também usou a palavra ciência como plataforma, foi outro alvo. No começo de janeiro, quando se anunciou a eficácia de 78% da Coronavac, ele afirmou: “Vitória da Ciência com C maiúsculo. Dia triste para os negacionistas. A vacina é o nosso passaporte para retomar a vida normal, salvar vidas e fazer a economia voltar a crescer”. “Vocês mataram a palavra ciência”, respondeu um usuário do Twitter.
Vida social não pode ser abarcada pelo método científico, diz filósofo
Para o filósofo Francisco Razzo, colunista da Gazeta do Povo, a polêmica em torno da ciência se dá, em parte, porque alguns cientistas opinam em excesso sobre temas que extrapolam sua área de expertise, sem estabelecer as fronteiras adequadas entre os saberes.
“A confusão que se dá hoje no debate público é que os cientistas assumiram um engajamento explícito e se apresentam como a palavra final a respeito de todas as coisas, inclusive do comportamento humano. Isso não é uma crítica ao trabalho científico, mas a essa postura específica, que não é uma postura salutar. O cientista passa a se autocompreender como alguém que também pode guiar decisões de natureza política, e a gente sabe que não pode ser assim. As decisões de natureza política passam por outro tipo de reflexão: sobre o que é justo, o que é correto, o que é bom para a sociedade”, afirma Razzo.
A tendência ao reducionismo científico – isto é, à ideia de que a explicação de todos os fenômenos do mundo poderia se reduzir ao âmbito da ciência – tem raiz em uma ideia sobre a ciência que começa na modernidade, especialmente a partir do século 19.
Na concepção clássica de Aristóteles, a ciência, como explica Razzo, buscava simplesmente compreender o mundo por meio da racionalidade e da experiência, chegando a “conhecimentos universais e necessários”, ou seja, a princípios gerais sobre a realidade que sempre valeriam para todos os casos semelhantes. Nessa perspectiva, a ciência era uma atividade puramente contemplativa e teórica, para compreensão da realidade.
Na modernidade, a ciência deixa de ser vista como uma atividade meramente teórica, e desponta a ideia de que cabe ao cientista não só conhecer, mas também transformar o mundo. “Os cientistas passam a se autocompreender como aqueles que podem trazer melhorias, aperfeiçoamento e progresso para o mundo social”, diz Razzo. “Na perspectiva moderna, em um arco que passa por positivistas como Augusto Comte, o cientista substitui o sacerdote, e a ciência passa a representar uma espécie de solução terapêutica para os males do mundo. O positivismo coloca os cientistas como verdadeiros sacerdotes. Ele vê os cientistas substituindo o papel do religioso, do filósofo.”
Essa compreensão de ciência, segundo Razzo, tem prevalecido hoje em dia em muitos casos. Trata-se, no entanto, de uma concepção que não reconhece as limitações do método científico, “cujo horizonte é sempre um objeto específico, um recorte”, e não a realidade como um todo.
“A construção da vida social e das leis sociais não se dá, a rigor, por essa forma de construir conhecimento. A nossa vida social, ética e política não faz a pergunta por leis que são necessárias e extraídas do método científico. As normas que regulam nossa vida social e ética são extraídas de uma reflexão de seres racionais que se perguntam como é melhor viver. Não é objeto da ciência considerar o que é justo e injusto. Quando o cientista se atreve a dizer o que é justo e injusto, ele avançou um sinal daquilo que a sua metodologia o limita a fazer”, explica o filósofo.
Para exemplificar, Razzo lembra qual deve ser a conduta de um médico diante de um paciente que precisa amputar a perna para sobreviver.
“Eu vou a um médico. Se o médico diz que eu tenho que amputar a perna, a decisão de amputar a perna não é do médico. A recomendação pode ser do médico. Ele pode dizer: 'A doença é assim e necessariamente vai te levar à morte. Vai ser preciso amputar a perna.' Só que a decisão de amputar a perna não é do médico. É de alguém que justifica sua vida mediante a concepção que ela tem do que é a boa vida. Essa ideia de que o cientista decide a moralidade e a ética de uma sociedade é equivocada. (...) O significado do sofrimento não é um problema científico. A ciência não dá conta de tudo”.
Cientistas apresentam visões distintas sobre o uso da palavra ciência
Cientistas de diversas áreas consultados pela Gazeta do Povo têm visões diferentes sobre a aplicação da palavra ciência nos últimos tempos.
Para Marcelo Hermes, professor de bioquímica da UnB, há um uso abusivo dessa palavra durante a pandemia. “Estão esgarçando a palavra ciência, a ponto de que vai chegar um momento em que a população não vai acreditar na ciência”, diz.
Hermes conta que, no início da pandemia, ele e alguns colegas começaram a usar o termo “cientocracia” para falar da mistura entre a ciência e a burocracia científica. Na opinião dele, havia excesso na exigência de formalidades para a aprovação de certos estudos, o que não convém no contexto de uma pandemia.
Para Hermes, as opções ideológicas acabam conduzindo as decisões de certos membros da comunidade científica, que politizam alguns assuntos e deixam pouca liberdade para o contraditório. “Cloroquina não funciona, acabou, bateu o martelo”, ironiza. “Quando é a vacina do Doria, não precisa mais ter ciência”, acrescenta.
Para Claudia Batista, professora do departamento de Neurobiologia da UFRJ, os cientistas não têm extrapolado suas funções. “Se falamos em pandemia, a ciência tem que entrar, tem que dar a base. Muita coisa a ciência ainda está investigando, mas muita coisa é até de senso comum para os cientistas, como o isolamento social”, diz ela. “A pandemia é um fenômeno biológico. Não é só uma questão social. Em termos de vacina, de como lidar com o vírus, de proteção à saúde pública, tudo isso, de fato, está no plano científico.”
Claudia pondera, no entanto, que “quando o debate não envolve conceitos que estão no plano experimental, a ciência pode complementar, mas ela não vai ter o principal papel”.
Na visão do biólogo Nilo Saccaro, o uso da ciência para justificar medidas de coerção social acaba deixando muitas pessoas com um pé atrás em relação aos cientistas. Essas pessoas, em muitos casos, não discordam da prática científica em si, mas tendem a ficar contrariadas com o discurso científico quando o veem vinculado às restrições de suas liberdades.
“Negar a importância da ciência é totalmente errado. Agora, quando são impostas decisões sobre as pessoas que são justificadas com base na ciência, as pessoas tendem a responder mal a essa coerção, e tendem a desacreditar a própria ciência”, observa ele. “A ciência é um processo de busca e descoberta. A maneira como a gente vai usar o conhecimento da ciência é uma opção política.”
Para Nilo, é inevitável que os cientistas tenham suas opiniões, e o trabalho científico envolve superar as idiossincrasias para se chegar à verdade. “Os cientistas são humanos. Têm suas limitações, seus vieses, suas falhas”, diz. O problema, segundo Saccaro, não está no fato de cientistas apresentarem suas visões, mas na tentativa de coagir a população com base na recomendação científica. “É até importante que haja um debate público e que os cientistas participem. O problema é quando isso é usado pela política como justificativa para a coerção. Quando as pessoas são tratadas como responsáveis, elas agem como tal. Quando elas são tuteladas, não dá certo.”