Em 27 de janeiro passado, a antropóloga Sandra Stoll se somou aos milhares de brasileiros que choraram os mortos da Boate Kiss, em Santa Maria (RS). "Como qualquer um", acompanhou o noticiário e contabilizou o assombroso número de vítimas. Ou pelo menos tentou. Sandra recém-aposentada na UFPR é autora de uma pesquisa tão surpreendente quanto original sobre a memória dos mortos no século 21. Em particular a memória dos jovens, cultivada por pais em cultos espiritualistas (leia ao lado). Por essas e outras, ela enxergou Santa Maria como poucos.
É incontável o número de pais de filhos mortos que entrevistou em cidades como São Paulo (SP) e Uberaba (MG), campos de sua pesquisa. E o bastante para tratar do que chama da "experiência indizível" de perder um filho. Que dirá dois ou três, e ainda seus amigos e seus vizinhos, como aconteceu no Rio Grande. "Talvez aquela cidade esteja marcada para sempre", comenta, em entrevista à Gazeta do Povo. Sandra falou sobre as famílias que acabaram, sobre os rituais de morte na internet e das particularidades dessa tragédia em que os "jovens ganharam uma cara".
Qual foi sua reação ao saber do episódio da Boate Kiss?
De senso comum. Um sentimento de perplexidade. Eram só jovens, mortos de forma coletiva em uma prática de lazer. É diferente de quando cai um avião ou quando a cidade sofre um tiroteio. Se um grupo está em guerra, a morte é esperada, ainda que não seja bem vista. Muitos pais dizem que viram o filho saindo sorridente. Agora se perguntam o que poderiam ter feito para que o mal fosse evitado.
A senhora se sente uma observadora do post mortem em Santa Maria...
A tragédia me interessa, claro, mas a forma de luto que pesquiso só vai aflorar daqui um tempo. Estudo de que maneira os familiares lidam com a perda dos filhos em dois, três meses, um ano depois. Ao mesmo tempo, o impacto é parecido. Podemos traçar paralelos. Os pais com os quais trabalho costumam dizer que há um nome para quem perde os pais, mas não há um para quem perde os filhos. É uma perda não natural. Podemos dizer que se trata de um valor cultural: a relação pais e filhos difere das outras, e ponto. Pode-se discutir de quanto seria uma indenização para os pais de Santa Maria. Mas, para quem perdeu um filho, essa experiência tem uma dimensão indizível.
Os pais não vão ter continuidade nos filhos. É o maior dilema?
Como não sou psicóloga nem mãe, não sei responder [risos]. Filhos trazem a ideia da continuidade. Mas nesse caso há uma história de família que se interrompe. Os que perderam todos os filhos não vão ter a geração subsequente. Toda uma geração na cidade de Santa Maria não vai se reproduzir. Toca a história da cidade. Será um marco. Se não para sempre, por um bom tempo.
Como tende a agir a mãe do filho morto?
Várias pessoas que perderam filhos criaram algum tipo de associação. O discurso do "para que isso nunca mais aconteça" geralmente é utilizado como politização, uma forma de coibir o infortúnio. Conheci alguns pais que se tornam uma espécie de membro do CVV [Centro de Valorização da Vida]. Se alguém está com um problema, liga para eles. Forma-se uma rede. Quando conseguem elaborar o que sofreram, passam a cuidar daqueles que tiveram perda recente.
É um paradoxo? A tragédia faz com que saiam da vida comum?
É um discurso. Diz-se que da morte de um filho nunca alguém se recupera, nunca se sai igual. Por ser uma experiência pouco construída socialmente, não estamos preparados para perder filhos. Formamos uma rede a partir da nova experiência. As pessoas em luto sempre me dizem que só pode compreender quem tenha passado pela mesma situação. Pense, o que dizer sobre alguém que desaparece por causa de um relógio e um tênis?
Como explicar a rede de solidariedade ocorrida em Santa Maria? Em geral, a violência provoca recuo...
É diferente. Foi um evento em outra escala. Fez com que no Brasil inteiro as boates passassem a ser vigiadas. A imensa solidariedade tem a ver com o tamanho da cidade. Aflorou porque os laços sociais ali são mais intensos do que numa grande capital. Todo mundo conhece alguma vítima ou conhece de ouvir falar. Ou era primo. Ou patrão. Ou empregado. Li na imprensa sobre um professor que teria perdido 18 alunos de uma mesma turma. Tem famílias que perderam dois, três filhos.
Que tipo de luto está ocorrendo ali?
Talvez numa cidade como Santa Maria os perigos e medos sejam diferentes do de uma grande cidade. De qualquer jeito, há maneiras contemporâneas de compartilhar sofrimento e perda modos que superam o luto tradicional. Existe o luto online. As pessoas postam fotos daqueles que perderam e se forma uma onda de apoio que vem pela internet. A tecnologia permite outras estratégias de compartilhamento, contradizendo a ideia corrente de que na vida contemporânea o luto se tornou uma prática privada e subjetiva.
No acidente da TAM, em 2007, os canais de tevê continuaram com sua programação. O episódio de Santa Maria fez a mídia parar. O que mudou?
Para responder eu precisaria etnografar o trabalho da imprensa. Mas provavelmente a mídia respondeu à massa de informação recebida contando quem eram as vítimas, dizendo de que classe social vinham, de que universidade. Os mortos não viraram só um número no jornal.
Uma diferença entre o acidente da TAM e o de Santa Maria é que na TAM não houve sobreviventes para contar o que aconteceu. Em Santa Maria houve quem saiu antes, quem soube depois, quem foi participar do resgate. Teve quem entrou e saiu várias vezes da boate, quem entrou para salvar alguém e ficou lá dentro. É uma outra relação.
Foi uma morte em massa, por isso houve uma tendência a particularizar. Lembrar que um seria engenheiro ou enfermeiro. Se não individualizar, vira massa. As vítimas de Santa Maria ganharam cara.