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No fim de julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou uma lei que, entre outras coisas, tipifica o crime de violência psicológica contra a mulher. Alguns juristas celebraram a novidade nas redes sociais, mas o caráter aberto e indefinido do texto aprovado também provocou reações desconfiadas.
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“A intenção do legislador foi excelente, mas o texto traz perigos à segurança jurídica, especialmente dos homens”, disse a juíza Ludmila Lins Grillo em suas redes sociais.
O texto em questão, que acrescenta o artigo 147-B ao Decreto-Lei nº 2.848 de 1940, diz que é crime “causar dano emocional à mulher”, com pena de reclusão de seis meses a dois anos. É considerada criminosa qualquer atitude que cause prejuízo ou perturbação ao “pleno desenvolvimento” das mulheres.
Também é crime “degradar ou controlar” as “ações, comportamentos, crenças e decisões” de mulheres por meio de “constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio”.
André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Antropologia Filosófica pela Universidade de Navarra, critica a indefinição de certas expressões empregadas no texto. “'Pleno desenvolvimento' é muito aberto. Pode ser desenvolvimento espiritual, psicológico, econômico, educacional…”, comenta. Para ele, o uso de termos “muito elásticos na interpretação dificulta em muito a defesa de uma pessoa que venha a ser acusada”.
O termo “ridicularização” poderia abrir espaço, por exemplo, para que um juiz com certa interpretação da lei incriminasse alguém por ironizar a fala de uma mulher.
“Os tipos penais têm que ser fechados, ou seja, as expressões utilizadas não podem ser muito genéricas, muito abertas. Eles têm que trazer elementos, enunciados e expressões que permitam uma fácil compreensão pelo cidadão e, também, que a atuação punitiva estatal seja guiada por uma reta razão”, diz Gonçalves Fernandes.
Outros projetos de lei recentes também usam termos vagos
A terminologia imprecisa e o uso de expressões da moda para criar tipos penais têm sido uma constante em projetos de lei que tramitam no Congresso.
O projeto de lei das fake news, por exemplo, que já foi aprovado no Senado, emprega 23 vezes o termo “desinformação”, definido da seguinte forma: “conteúdo, em parte ou no todo, inequivocamente falso ou enganoso, passível de verificação, colocado fora de contexto, manipulado ou forjado, com potencial de causar danos individuais ou coletivos, ressalvado o ânimo humorístico ou de paródia”.
Locuções adverbiais como “em parte”, o uso frequente da conjunção “ou” e expressões como “com potencial” admitem uma vasta gama de interpretações sobre o que poderia ser caracterizado como desinformação. Para Gonçalves Fernandes, há uma tendência atual à criação de leis com “enunciados com sujeitos e predicativos altamente abertos, que permitem uma hermenêutica muito ampla, elástica”.
É nessa abertura à interpretação que se apoia, por exemplo, o projeto de lei de 2015 de autoria do ex-deputado Jean Wyllys (PT-RJ), que pretende descriminalizar o aborto, mas só emprega a palavra “aborto” uma vez ao longo de suas sete páginas.
Para defender a descriminalização do aborto, o projeto usa, em vez disso, o eufemismo “saúde reprodutiva”, que é definido como “o estado de bem-estar físico, psicológico e social nos aspectos relativos à capacidade reprodutiva da pessoa, que implica na garantia de uma vida sexual segura, a liberdade de ter filhos e de decidir quando e como tê-los”.
Imprecisão das leis é prato cheio para ativismo judicial
Os termos abertos usados por deputados na elaboração das leis acabam sendo um prato cheio para o ativismo judicial.
Para Gonçalves Fernandes, a noção do juiz como agente transformador da história, cada vez mais comum no Poder Judiciário, é facilitada por leis muito abertas.
“As decisões judiciais, hoje, não são mais meros produtos do raciocínio lógico, dedutivo, e da aplicação de leis, pura e simplesmente”, diz. “Se o juiz tiver uma posição ideológica A, ele vai encaixar A. Se tiver uma posição ideológica B, vai encaixar B, e assim por diante. Isso gera insegurança jurídica.”
A mensagem que fica para juristas em formação, com isso, é que a aplicação das leis é mera questão de interpretação. “Hoje, tem essa dificuldade profunda de que existe um descolamento entre o trabalho hermenêutico e a realidade das coisas”, comenta Gonçalves Fernandes. “As novas gerações já levam o ativismo como algo bom.”
Em última instância, segundo ele, a consequência é que os novos juízes acabarão “endossando alguma cartilha ideológica que dê uma espécie de receituário completo de tudo aquilo que eles precisam ter de linguagem para poder aplicar no caso” – o que, na opinião dele, “é quase inevitável para um juiz que está na posição de decidir e que não tem os elementos filosóficos para compreender a realidade”. “Ele não vai criar do nada uma interpretação”, conclui.