O órgão máximo do Poder Judiciário no Brasil está cada vez mais imerso na Agenda 2030 das Nações Unidas (ONU) - também conhecida pelo nome de “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”. No começo deste mês, o Supremo Tribunal Federal (STF) firmou uma parceria com a Universidade Federal do Paraná (UFPR) para, entre outras coisas, acelerar a identificação de ações que tenham relação com um dos 17 itens da Agenda, como “Alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas” e “Adotar medidas urgentes para combater as alterações climáticas e os seus impactos”. O acordo técnico estabelece que a universidade vai apoiar o trabalho de categorização das ações do Supremo de acordo com a pauta da Agenda 2030.
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A classificação, hoje feita por servidores do próprio STF, funciona assim: cada novo caso relevante apresentado ao tribunal é avaliado e ganha, se apropriado, um “carimbo” indicando que aquela ação tem a ver com um tema específico da Agenda 2030 — ou, por vezes, mais de um. E não se trata de um mero trabalho de avaliação: as ações que envolvem temas dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável têm ganhado preferência de julgamento.
A colaboração é mais um sinal recente de que a Corte pretende adotar como um norte os princípios aprovados pelos membros da ONU em setembro 2015 — e que, no caso do Brasil, foi referendado pela gestão da ex-presidente Dilma Rousseff (PT).
A adesão do STF à Agenda 2030 não é amplamente conhecida. O anúncio formal aconteceu em novembro de 2020, já sob a presidência de Luiz Fux. Poucos meses depois, o presidente do STF comemorava o fato de a Agenda 2030 (os mais afeiçoados ao tema, como Fux, costumam pronunciar “agenda vinte trinta”) influenciar diretamente as pautas da suprema corte. “A indexação do selo de ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável) tem sido interpretada por esta presidência como critério preferencial para a inclusão de ações em pauta”, disse ele.
No primeiro semestre de 2021, dos 150 processos listados, 120 tinham ligação com a agenda — ou seja, 76%. Os números foram apresentados por um orgulhoso Fux, que também aproveitou a oportunidade para celebrar o fim do monopólio do “direito objetivo”.
"A agenda 2030 transfere o foco de análise das ações judiciais, que deixam de ser filiadas apenas sob a ótica do direito objetivo (...) e passam a ser lidas sob a ótica dos sujeitos de direito que reclamam", afirmou Fux. Entre os novos direitos, de acordo com o ministro, está o "direito à economia sustentável".
E o STF parece estar levando o assunto a sério. Segundo o Portal Jota, além da parceria com a UFPR, o tribunal criou até um sistema de inteligência artificial para classificar as ações a espera de julgamento.
O que é agenda 2030
De acordo com a ONU, o objetivo principal da Agenda 2030 é que o mundo chegue ao ano de 2030 mais próspero e menos desigual. Em um primeiro olhar, os objetivos listados pelo documento parecem louváveis. Muitos de fato o são: na lista, estão a erradicação da pobreza extrema, o combate à exploração sexual e a universalização da educação. Embora empregue a palavra “gênero” diversas vezes, o documento usa o termo no contexto da relação entre homem e mulher, e nem mesmo menciona a causa dos gays e transexuais. Por ter sido resultado de uma longa deliberação na ONU (com a participação de países mais conservadores nesse quesito), a Agenda 2030 deixou as referências mais explícitas a esse tema de fora.
Ainda assim, com frequência, os itens da Agenda 2030 são contestados porque não estão diretamente sujeitos à soberania do eleitor brasileiro. Um governo (no caso, o governo Dilma), assumiu compromissos com um órgão internacional que se estendem pelos mandatos de seus sucessores. No caso do STF, é ainda pior, já que o tribunal não é composto por políticos eleitos, e não tem como função definir uma agenda para o país.
E o mais grave: o Supremo tem usado o tema para priorizar agendas que não estão mencionadas no documento da ONU. E é aí que reside o problema. A lógica é a seguinte: o Supremo decidiu priorizar temas que têm relação com a Agenda 2030. Mas quem define quais temas têm a ver com essa agenda é o próprio Supremo. E o STF decidiu adotar uma interpretação criativa do documento, assim como costuma fazer com a Constituição.
Um exemplo recente ilustra como a Agenda 2030 tem sido usada para fundamentar o avanço de causas “progressistas” na pauta do STF. A ADPF 787, de autoria do Partido dos Trabalhadores (PT) pede, entre outras coisas, que a Declaração de Nascido Vivo (DNV) deixe de trazer as expressões “pai” e “mãe”. A justificativa: o formato exclui pessoas transexuais ou casais formados por pessoas do mesmo sexo. O ministro Gilmar Mendes deu razão ao partido, e ainda determinou em decisão liminar que, a partir de agora, a DNV utilize apenas a expressão “parturientes”. A ação ganhou preferência porque, na classificação do STF, recebeu dois selos da Agenda 2030: “Saúde e Bem-Estar” e “Redução das Desigualdades” - embora o documento da ONU nada afirme sobre a eliminação dos termos “pai” e “mãe”.
Outra exemplo de ação classificada, de acordo com essa categorização, é a ADI 5.668. Impetrada pelo PSOL, o processo que pretende impor mecanismos de ideologia de gênero às escolas tem 6 selos da Agenda 2030. Entre outras coisas, o partido quer o uso do nome social, a aprovação do namoro entre menores de idade do mesmo sexo e aulas sobre teorias de gênero nas instituições de ensino.
Por causa da falta de consenso sobre temas mais controversos, a Agenda 2030 também não menciona diretamente o aborto. Mas, como o STF tem demonstrado, a interpretação do documento é flexível. Uma das metas fala em “garantir o acesso universal a serviços de saúde sexual e reprodutiva”, o que, de acordo com algumas leituras, é uma menção à interrupção da gestação. A própria Organização Mundial da Saúde (OMS), um braço da ONU, considera que “os direitos reprodutivos" também incluem o aborto.
O documento da ONU ainda traz objetivos genéricos e pouco claros, como “Criar marcos políticos sólidos em níveis nacional, regional e internacional, com base em estratégias de desenvolvimento a favor dos pobres e sensíveis a gênero, para apoiar investimentos acelerados nas ações de erradicação da pobreza”.
No Brasil, além do STF, outros tribunais têm adotado os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável para guiar suas ações. Entre eles, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E não é difícil achar interpretações que extrapolam o conteúdo da Agenda 2030. Para o Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região, com sede no Rio Grande do Sul, a igualdade de gênero mencionada na Agenda 2030 inclui mulheres que se identificam como transexuais — ou, em outras palavras, que não são “cisgênero”. “Esse objetivo só vai ser atendido quando todas as mulheres, independente da raça, da classe social, de ter ou não deficiência e de observar ou não esse padrão cis-heteronormativo tiverem igualdade no acesso a direitos”, afirma a juíza Gabriela Lacerda, em uma peça produzida pelo TRT para divulgar a adesão à Agenda 2030.
Sobre os questionamentos da reportagem relacionados ao uso ideológico dos “Objetivos de Desenvolvimento Sustentável”, o STF respondeu, por escrito, que a Agenda 2030 “tem a finalidade de envolver agentes públicos e privados na missão de erradicar a pobreza e promover a paz mundial”. O Supremo afirmou ainda que “visa a priorizar julgamentos que estejam relacionados com a erradicação da pobreza, o fortalecimento das instituições e o respeito aos direitos humanos previstos na Constituição”.
Já a UFPR, a primeira universidade a firmar uma parceria do tipo com o tribunal, afirmou não enxergar qualquer tipo de carga ideológica no conteúdo da Agenda 2030. “Trata-se de iniciativa importante e necessária do Supremo Tribunal Federal, respeitando a Constituição Federal de 1988, para a proteção e tutela dos direitos fundamentais no país”, disse em nota.
De acordo com a instituição, o acordo com o STF tem como objetivo “promover o desenvolvimento científico do país nas áreas da Justiça e dos Direitos Humanos por meio de cursos, eventos científicos e desenvolvimento de pesquisas nas áreas acima indicadas”. A universidade também explica que a parceria não implica qualquer compromisso financeiro das partes.
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