Companheiros de prensa

Novela de época que mereça esse nome tem sempre a figura de um tipógrafo, sujando as mãos e o avental de tinta para fazer funcionar uma engenhoca de ferro capaz de produzir jornais. Eles nunca são os mocinhos, é verdade – posto que cabe aos jornalistas e poetas abolicionistas e republicanos, às voltas com barões e chibatas. Mas estão muito próximos disso.Na história do mundo do trabalho vida não é novela. Mas chega perto. A primeira greve de que se tem notícia no país foi em 1858, no Rio de Janeiro, encabeçada por tipógrafos. Era uma categoria na berlinda. Sem eles não chegariam à população "insultos impressos" ao imperador, rodapés para moças casadoiras e anúncios de escravos fujões. Difícil imaginar que algum escritor ligado à imprensa – como Machado de Assis ou João do Rio – não tivesse entre seus achegados um impressor, tão próximas a pena e a prensa estavam.

No Paraná, a saga dos gráficos não fugia à regra. Apenas quatro meses depois da Emancipação Política do Estado, em 1853, Curitiba ganhou um jornal – o 19 de Dezembro –, obra de Cândido Lopes. Com o 19 vieram os operários e seus tipos. A indústria da erva-mate, que projetou economicamente o estado, também não abria mão da categoria: os rótulos coloridos, saídos da arte dos litógrafos alemães, não iriam longe sem a lida dos tipógrafos.

Some-se Impressora Parana­­ense, criada em 1882. Idem para a admirável fase das revistas simbolistas – estima-se que chegaram a 20 títulos na virada do século 19 para o 20. Em 1911, tamanha a demanda nas oficinas, Curitiba ganha uma associação dos "homens da graxa" – um sindicato, sem o qual não se conta a história do trabalho no estado.

Os associados vinham principalmente do Diário da Tarde. Reunidos na Sociedade Mélpo­­mene, em 30 de abril, há exatos 100 anos, formaram o Centro Graphico Paranaense, elegendo presidente Benedicto de Andrade e Souza. Fizeram uma ação já no dia seguinte – 1.º de Maio – e teceram um estandarte de classe. Com ele cruzariam o século.

Hoje, a peça é protegida feito um sudário nas dependências do Sindicato dos Trabalhados nas Indústrias Gráficas do Paraná (Stig), um prédio de 570 metros quadrados, no Rebouças. Esse é o atual nome do Centro Graphico Paranaense, reconhecido como o sindicato mais antigo do Paraná em atividade.

Os tempos de fato mudaram e não há sombra da época em que o Diário da Tarde funcionava a bordo de uma impressora Marinoni. A maior parte dos 1,5 mil associados ao Stig trabalha em gráficas de livros, embalagens e folhetos, e não em jornais, o que os tira do epicentro político e social do estado. Tampouco se fazem greves de virar a cidade de canelas para o ar. A figura dos gráficos, outrora colada à bravura das passeatas, hoje é associada às habilidades técnicas para enfrentar uma indústria que dá saltos por minuto. "A gente mal acompanha tanta inovação. Tivemos de nos reinventar", diz Leonel Ramos, atual presidente do sindicato.

Crise

Mas, como se dizia, o "tempo não apaga". Há tantas ou mais informações no arquivos do Stig do que numa encubadora tecnológica. O centenário de um órgão de classe chama atenção para esse legado .

Já foi assunto dos mais apaixonantes, mobilizando levas de pesquisadores. Mas a década de 1980 – aquela em que se passou a falar em ócio criativo e no rompimento das fronteiras entre trabalho, lazer e conhecimento – se encarregou de tentar sepultar essa preocupação. "Alguns autores disseram adeus ao tema, como se fizesse parte do passado e vivêssemos num mundo pós-capitalista", observa a cientista social Maria Aparecida Bridi, do Núcleo de Estudos Sindicais da UFPR.

Nem as barulhentas greves do ABC, nem a popularidade de um presidente operário impediram a morte anunciada dos estudos sindicais. Para quem resiste, a pressa em falar de "crise" é uma cilada. A concentração de riquezas aumentou nos EUA na medida em que o movimento sindical recrudesceu. E apesar de todos os ganhos dos trabalhadores, não é difícil encontrar, nos dias de hoje, marcas de exploração que parecem reportar à tirania da Revolução Industrial.

Não bastasse, o estudo da história do sindicalismo no Brasil sofre de mais-valia. Como há muitos sindicatos e áreas diferentes, faltam dedos para contar as pesquisas ainda por serem feitas. O fascínio pela informatização, que ironia, tem feito com que metros e metros de documentação sejam incinerados, para ceder lugares nos arquivos públicos, sem que sejam visitados por estudiosos. "Temos apenas 70 mil inventários trabalhistas dos anos 20 aos 2000", alerta Bridi, de posse de um dos muitos projetos de pesquisa para resgatar esses documentos caros à História, à Sociologia. Vale uma greve.