O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) quer afastar e denunciar médicos e outros profissionais de saúde que, em razão de convicções pessoais, se recusem a realizar o aborto em menores que engravidaram alegando violência sexual. Trata-se de uma regra proposta pelo órgão dentro de uma minuta de resolução para regulamentar os atendimento, nos serviços de saúde, às crianças e adolescentes que buscam o aborto.
O texto foi elaborado pela atual direção do Conanda e pode ser aprovado numa assembleia do órgão marcada para os dias 6 e 7 de novembro. Suas resoluções, em tese, têm força normativa, isto é, devem ser seguidas pelos órgãos de proteção da infância, como como conselhos tutelares, polícias, Ministério Público e Judiciário.
A minuta da resolução, cujo teor foi revelado na semana passada pela Gazeta do Povo, passou a circular no meio médico e gerou indignação dos profissionais, por afrontar o que é considerado um dos pilares do ofício: a objeção de consciência.
Trata-se de um direito fundamental, garantido pela Constituição, que diz ser “inviolável a liberdade de consciência” e que “ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei”.
A minuta da resolução define a objeção de consciência como o “direito individual de negativa de cumprimento de dever profissional com base em convicções morais”.
Mas, ao regulamentar o exercício desse direito, o texto diz que “evitar-se-á a presença de profissionais objetores de consciência em equipes destinadas à prestação do serviço de interrupção legal da gravidez”. Na prática, esses profissionais seriam afastados dos hospitais que fazem o aborto.
Outra regra prevê a possibilidade de eles serem processados pelos órgãos de classe ou na Justiça caso se recusem a realizar o aborto. “A recusa indevida em cumprir uma obrigação legal com base em convicções morais, políticas, religiosas e crenças pessoais deve ser denunciada aos conselhos de fiscalização profissional, aos conselhos de direitos e ao Ministério Público, por representar violação dos deveres ético-profissionais e dos direitos de crianças e adolescentes, em particular de seu direito à saúde”, diz o texto.
A reportagem consultou alguns médicos membros do Conselho Federal de Medicina (CFM), que fiscaliza o exercício da profissão. Embora não falem em nome do órgão, disseram que, se aprovada, a resolução será ignorada pela classe.
Para o obstetra Raphael Câmara, especialista no tema do aborto e que hoje ocupa o cargo de conselheiro do CFM, “nenhum conselho regional no Brasil vai dar guarida a esse tipo de coisa”. “Objeção de consciência é um pilar da medicina. Nos conselhos, isso não prospera de jeito nenhum. Pode na Justiça, dependendo da cabeça do juiz”, afirma.
O infectologista Francisco Cardoso, atualmente vice-corregedor do CFM, vê do mesmo modo. Para ele, o Conanda não tem nenhuma competência para criar normas que interfiram na conduta médica. Para ele, a tentativa de aprovar regras para os médicos é um “devaneio” e “fruto de profundo desconhecimento e desinformação”.
“O efeito prático vai ser nenhum, porque ninguém vai respeitar. Isso sim é um estupro moral e ético do profissional de saúde, que seria obrigado a fazer algo que ele não quer e que ele não deseja”, diz, lembrando que apenas nos casos de urgência e emergência a objeção de consciência do médico pode ser afastada. Cardoso também criticou conceitos contidos na proposta de resolução, como o que crianças têm direitos “sexuais e reprodutivos”, bem como a influência de recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS) na proposta.
“É para dourar a pílula. Aborto é assassinato. A questão é se você aceita ou não as justificativas para matar o bebê. Mas que é, é”, diz ele, garantindo que é também a visão que prevalece hoje no CFM e na maior parte da comunidade médica.
O Código de Ética do CFM estabelece que “o médico exercerá sua profissão com autonomia, não sendo obrigado a prestar serviços que contrariem os ditames de sua consciência ou a quem não deseje, excetuadas as situações de ausência de outro médico, em caso de urgência ou emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos à saúde do paciente”.
O mesmo código diz que ele não pode ser prejudicado e discriminado em função de suas convicções. “É direito do médico exercer a medicina sem ser discriminado por questões de religião, etnia, cor, sexo, orientação sexual, nacionalidade, idade, condição social, opinião política, deficiência ou de qualquer outra natureza”, diz o Código de Ética. Outro artigo diz ser seu direito “recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência”.
Um dos trechos da minuta de resolução cita o Código de Ética do CFM, mas omitindo pontos cruciais. Na introdução da proposta, o Conanda faz referência à obrigação do médico de manter sigilo sobre a relação com o paciente, inclusive quando se tratar de crianças e adolescentes.
Várias regras da minuta buscam garantir que uma menina possa abortar sem o consentimento ou mesmo o conhecimento de seus pais ou responsáveis. Para isso, são citados dois artigos do Código de Ética do CFM, mas sem a reprodução da íntegra desses dispositivos.
“Considerando os artigos 73 e 74 da Resolução CFM nº 2.217/2018 (Código de Ética Médica), que vedam aos médicos a revelação de fatos de que tenha conhecimento em virtude de sua profissão e revelar sigilo profissional relacionado a crianças e adolescentes, inclusive a seus pais ou representantes legais, desde que a criança ou adolescente tenha discernimento...”, diz a minuta em sua parte inicial, no qual apresenta as bases e justificativas da norma.
Os artigos mencionados, no entanto, admitem exceções. O 73 diz que é vedado ao médico revelar fato de que tenha conhecimento em virtude do exercício de sua profissão, “salvo por motivo justo, dever legal ou consentimento, por escrito, do paciente”, o que foi ocultado no texto do Conanda. Da mesma forma, o artigo 74 diz ser vedado ao médico revelar sigilo profissional relacionado a paciente criança ou adolescente, inclusive a seus pais ou representantes legais, “salvo quando a não revelação possa acarretar dano ao paciente”.
O que diz o Conanda e defensores do aborto em crianças vítimas de estupro
Na resolução e em resposta a essa reportagem, o Conanda chamou a atenção para o número “alarmante” de abusos de crianças e adolescentes, destacando que a maior parte dos casos, segundo pesquisas e dados oficiais, ocorre em casa, com agressores da família ou próximos.
“Conforme aponta um estudo feito pelo Unicef em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2021 e 2023 o Brasil teve 164.199 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para além do número alarmante, há ainda o problema da subnotificação: o levantamento cita uma pesquisa do Ipea que indica que apenas 8,5% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são reportados às autoridades policiais. Quando consideradas as vítimas entre 0 e 9 anos de idade, familiares e pessoas próximas são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual”, disse o órgão, em nota.
O Conanda foi procurado pela reportagem para esclarecer e comentar os pontos específicos e delicados da minuta de resolução. O órgão confirmou que estuda a elaboração de uma resolução para garantir o atendimento de crianças e adolescentes vítimas estupro, mas afirmou que o conteúdo do texto ainda é discutido pelos conselheiros, em diálogo com outras instituições e especialistas. Por isso, não respondeu a várias perguntas sobre o conteúdo.
“Não é possível tratar do mérito a respeito de fragmentos das discussões ainda não consolidadas em um texto final”, afirmou, sobre os questionamentos feitos pela reportagem.
Em nota por escrito enviada à reportagem, o órgão justificou a iniciativa de elaborar a proposta de resolução. “Uma das principais missões legais do Conselho é dispor sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violências sexual. O Conanda tem se debruçado ao longo dos anos a respeito das falhas e da ausência de serviços que garantam o atendimento de crianças vítimas de estupro”, afirmou.
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