A proposta do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) para incentivar o aborto em crianças e adolescentes vítimas de estupro, revelada pela Gazeta do Povo, também prevê a possibilidade de que elas possam realizar o procedimento nos serviços de saúde sem o consentimento ou mesmo o conhecimento dos pais ou responsáveis.
O órgão, que é vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos, está prestes a aprovar uma resolução que busca incentivar, facilitar e acelerar o aborto em crianças e adolescentes que engravidaram por abuso. A minuta do texto, obtida com exclusividade pela reportagem, busca garantir a elas ampla autonomia para decidir pelo aborto ou por manter a gravidez, independentemente da vontade de seus pais ou responsáveis legais.
“A ausência dos pais ou responsável não deve impedir o atendimento e todos os esclarecimentos sobre aborto legal devem ser fornecidos à criança ou adolescente”, diz um dos artigos propostos. “É vedada a imposição de qualquer exigência, como a obrigatoriedade da presença de um responsável para acompanhamento no serviço de saúde, que possa afastar ou impedir o exercício pleno da criança ou adolescente de seu direito fundamental à saúde e à liberdade”, diz o trecho seguinte do dispositivo proposto.
A minuta da resolução, subscrita pela atual presidente do Conanda, Marina de Pol Poniwas, foi apresentada aos demais membros do Conanda em outubro e pode ser votada numa assembleia do órgão nos próximos dias 6 e 7 de novembro. Se o texto for aprovado, ele terá força normativa, isto é, deverá ser seguido pelos serviços de saúde e instituições que atendem crianças vítimas de abuso, como conselhos tutelares, polícias, Ministério Público e Judiciário.
Atualmente, compõem o conselho 23 representantes, titulares ou suplentes, de entidades civis (ONGs, associações de classe, centrais sindicais, movimentos sociais, institutos de pesquisa, etc.) e representantes do governo (servidores ou funcionários comissionados dos ministérios da Educação, Casa Civil, Fazenda, Desenvolvimento Social, Saúde, Trabalho, Justiça, Cultura, Igualdade Racial, Indígenas, Planejamento, Secretaria-Geral da Presidência e Esporte).
A tendência, apurou a reportagem, é de aprovação da resolução, principalmente por impulso dos representantes da sociedade civil – muitos militam em favor da ampliação das hipóteses permitidas de aborto –, embora integrantes do governo temam um desgaste político.
Procurado pela reportagem, o Conanda confirmou que estuda uma proposta de resolução para garantir o atendimento de crianças e adolescentes vítimas estupro, mas afirmou que o conteúdo do texto ainda é discutido pelos conselheiros, em diálogo com outas instituições e especialistas. Por isso, não comentou ou esclareceu pontos mais delicados da proposta.
“Não é possível tratar do mérito a respeito de fragmentos das discussões ainda não consolidadas em um texto final”, afirmou, sobre seis questionamentos feitos pela reportagem sobre o conteúdo da minuta de resolução.
A proposta de resolução baseia-se na permissão que a lei brasileira concede para o aborto em casos de estupro. No caso de menores de 14 anos, é pacífico na Justiça do país o entendimento segundo o qual a conjunção carnal ou qualquer ato libidinoso configura um estupro e, portanto, um crime, ainda que a relação sexual tenha ocorrido com um suposto consentimento ou num pretenso “relacionamento amoroso”. Assim, mesmo que uma criança ou adolescente até essa idade não tenha sido forçada fisicamente a fazer sexo, o abuso é presumido, conforme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Na primeira reportagem sobre o assunto, a Gazeta do Povo mostrou como, em conjunto, os artigos da resolução buscam levar a criança ou adolescente a realizar o aborto, sem contrabalançar com a opção de levar a gravidez adiante, de modo a preservar a vida em formação, e doar a criança caso a mãe não queira ter e criar um(a) filho(a).
Para analisar as normas propostas pelo Conanda, foram consultados advogados, psicólogos, médicos e estudiosos com conhecimento e experiência na proteção da infância com perspectiva “pró-vida”, ou seja, que defende a preservação da vida do feto.
Muitos desses entrevistados reconhecem a permissão legal do aborto em crianças abusadas, em razão dos riscos, sofrimentos e adversidades enfrentadas por essas crianças e adolescentes. Ou seja, os impactos em sua saúde física, mental e psicológica, bem como o constrangimento social e os dilemas familiares que podem vivenciar se decidirem levar a cabo a gravidez para dar à luz – na maioria dos casos, os dados revelam que as gestações são fruto de abusos sexuais dentro de casa, praticados por pais, padrastos, tios ou até irmãos.
Contemplamos também a posição do Conanda e do Ministério da Saúde sobre o assunto.
Aborto sem consentimento dos pais
Em vários trechos da proposta de resolução, o Conanda faz menção a recomendações da Organização Mundial da Saúde sobre o aborto. É uma remissão a diretrizes aprovadas em 2022 pela agência internacional que buscam remover “barreiras” para o aborto.
Entre elas está a própria criminalização do procedimento – previsto no Código Penal brasileiro desde 1940 –, bem como tempos de espera obrigatórios, exigência de aprovação por outras pessoas (como parceiros, membros da família ou instituições), além de limites sobre o período de gravidez em que um aborto pode ocorrer – o que também foi contemplado pelo Conanda.
O texto da minuta faz expressa referência a recomendação da OMS segundo a qual o aborto deve ser “garantido independentemente da autorização de outra pessoa ou instituição, cabendo aos responsáveis legais apenas o oferecimento de suporte e fornecimento de informação imparcial, de modo que a decisão seja baseada nos valores e preferência da pessoa gestante e não condicionada a autorização de terceiros”.
Em relação aos pais ou responsáveis, a proposta de resolução do Conanda busca privilegiar a vontade da criança ou adolescente.
“É dever do Estado, da família e da sociedade respeitar a integridade e a autonomia de crianças e adolescentes que buscam o acesso ao aborto legal, abstendo-se de qualquer ato que constranja, ameace ou provoque medo, vergonha ou culpa em decorrência da decisão de interromper a gestação, garantindo, assim, um ambiente seguro e respeitoso para o exercício de seus direitos”, diz um dos artigos propostos.
“A criança ou adolescente tem o direito de expressar livremente suas opiniões, sendo vedado, nestes casos, a prevalência apenas da opinião dos responsáveis legais, como única e exclusiva forma de determinar o destino e futuro dessa criança ou adolescente”, diz um outro artigo da minuta, acrescentando que “nos casos em que houver divergência entre os genitores, deverá prevalecer o melhor interesse da criança e do adolescente” e que “o poder familiar não pode legitimar a exposição de crianças e adolescentes a riscos a sua saúde e integridade física, na contramão de seus melhores interesses”.
Nesse mesmo artigo, a minuta prevê que os profissionais envolvidos no processo garantam “um espaço acolhedor e propício para a escuta dos pais ou responsáveis legais”. O trecho seguinte diz que esse procedimento será feito “visando sempre apoiar e respeitar a vontade expressa pela criança e pelo adolescente, sem prejuízo da garantia imediata da interrupção da gravidez, caso essa seja a vontade manifestada pela criança ou adolescente”.
Para Andrea Hoffmann, presidente do Instituto Isabel, uma entidade pró-vida, a previsão de afastamento dos pais contraria as leis vigentes no Brasil. “Os direitos dos pais em relação aos seus filhos devem prevalecer enquanto estiver vigente o atual Código Civil, em que se define a capacidade relativa somente aos 16 anos e a total a partir dos 18. Abaixo dos 18 quem determina a atuação da criança e do adolescente são seus pais. Fere de morte a legislação civilista ao dar ‘vontade’ ao menor de idade, incapaz para os atos da vida civil”, diz Andrea Hoffmann.
Aborto sem conhecimento dos pais ou responsáveis
Outras partes da minuta possibilitam que uma criança ou adolescente que declare estar grávida em razão de um estupro seja orientada sobre a possibilidade de realizar o aborto ainda que sem o conhecimento dos pais ou responsáveis sobre tal iniciativa.
“A criança e o adolescente possuem direito à privacidade e confidencialidade no atendimento, inclusive de seus pais ou responsáveis legais, de acordo com sua maturidade, sendo prioritária a preservação de sua saúde e o seu bem-estar físico e psicológico”, diz uma das regras.
Outro trecho busca garantir que os profissionais de saúde que atendem a criança mantenham o sigilo de sua identidade e de sua vontade em relação a “atores externos”.
“A garantia do sigilo profissional é um direito da criança e adolescente vítima de violência. Durante todo o atendimento à criança e ao adolescente, será garantido o absoluto sigilo de sua identidade, de seus dados pessoais, manifestações de vontade, agendamentos e todas as informações compartilhadas a fim de garantir o procedimento”, diz o artigo.
“É expressamente vedado aos atores do serviço que estiver atendendo a criança ou adolescente o compartilhamento de informações da criança ou adolescente com atores externos ao serviço referido, exceto sob expresso consentimento da criança ou adolescente”, diz o trecho seguinte do dispositivo.
A proposta ainda diz que, “em caso de conflitos entre a vontade expressa pela criança ou adolescente e seus responsáveis legais, é direito das crianças e adolescentes a assistência por defensor/a público/a em todos os atos processuais”.
Para a senadora Damares Alves, ex-ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a ausência dos pais, como regra geral, é preocupante. “Essa é uma decisão que a criança não tem condições de tomar sozinha”, diz a parlamentar. “Imagine uma menina de 13, 14 anos estuprada. Ela já está emocionalmente abalada, o corpo machucado, a mente machucada, a alma machucada e ela tem que tomar uma decisão sem a presença dos pais?”
O que dizem o Conanda e defensores do aborto em crianças vítimas de estupro
Defensores do aborto nesses casos argumentam que, nessas situações, os pais ou responsáveis muitas vezes realizam abortos clandestinos, muito mais inseguros, para esconder os crimes e até continuar o abuso. Daí a lógica para permitir que a criança busque o procedimento na rede de saúde sem consentimento ou conhecimento dos pais.
Na resolução e em resposta a essa reportagem, o Conanda chamou a atenção para o número “alarmante” de abusos de crianças e adolescentes, destacando que a maior parte dos casos, segundo pesquisas e dados oficiais, ocorre em casa, com agressores da família ou próximos.
“Conforme aponta um estudo feito pelo Unicef em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre 2021 e 2023 o Brasil teve 164.199 casos de violência sexual contra crianças e adolescentes. Para além do número alarmante, há ainda o problema da subnotificação: o levantamento cita uma pesquisa do Ipea que indica que apenas 8,5% dos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes são reportados às autoridades policiais. Quando consideradas as vítimas entre 0 e 9 anos de idade, familiares e pessoas próximas são responsáveis por 68% dos casos de violência sexual”, disse o órgão, por meio de nota.
Dados oficiais coletados pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), uma ONG dedicada ao estudo da criminalidade no país, confirma essa realidade. A mais recente edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública registra que, no ano passado, 83.988 pessoas foram vítimas de estupro. Desse total, 76% eram vulneráveis, ou seja, menores de 14 anos. 64% dos agressores de vítimas com idade entre 0 e 13 anos eram familiares e 22,4% eram conhecidos da família.
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