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Além de incentivar o aborto em crianças e adolescentes vítimas de estupro, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) quer garantir que, nesses casos, o feto possa ser retirado mesmo quando a gestação esteja em fase avançada e já seja possível preservar a vida da bebê em formação fora do útero da mãe.
Na proposta de resolução que busca regulamentar o atendimento de menores que engravidaram mediante violência sexual, obtida com exclusividade pela Gazeta do Povo, o órgão prevê que a interrupção da gravidez seja realizada “independentemente” do tempo gestacional ou do peso fetal.
O tempo de gestação é apresentado no texto como um dos “obstáculos indevidos” para a realização do procedimento. Por isso, deveria, na visão dos autores da proposta, ser desconsiderado pelos médicos que recebem a criança grávida que deseja realizar o aborto.
A proposta está prestes a ser aprovada pelo Conanda, órgão vinculado ao Ministério dos Direitos Humanos que tem como missão regulamentar políticas públicas para a proteção da infância no país. O texto foi apresentado para os membros do colegiado – representantes de entidades da sociedade civil e membros do governo federal – em outubro e tem previsão de ser votada na próxima assembleia do órgão nos dias 6 e 7 de novembro.
Se for aprovada, a resolução terá força normativa, isto é, deverá ser seguida pelos serviços de saúde e instituições que atendem crianças vítimas de abuso, como conselhos tutelares, polícias, Ministério Público e Judiciário.
O argumento para a interrupção da gravidez independentemente do tempo gestacional é o de que o Código Penal não estabelece um limite temporal para a realização do procedimento.
Até pouco tempo atrás, considerava-se, no Brasil e em várias partes do mundo, que o aborto só poderia ser feito até as 22 semanas de gestação, pois a partir desse estágio há chance razoável de o feto sobreviver fora do útero, desde que receba os devidos cuidados médicos.
Isso começou a mudar em 2022, quando a Organização Mundial da Saúde (OMS) lançou novas recomendações para o aborto, considerando o tempo de gestação como uma barreira indevida, que deveria ser superada nas legislações dos diferentes países.
Essas recomendações influenciaram diretamente a confecção da proposta de resolução do Conanda, embora ainda dividam a comunidade médica no Brasil. Dentro dela, ainda prevalece a visão de que o aborto após 22 semanas é antiético, justamente em razão da chance de sobrevida do feto. A questão tornou-se foco de intensa disputa nos últimos anos.
Em 2022, sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde havia orientado os hospitais a não realizar o aborto nesses casos.
Em fevereiro deste ano, sob o governo de Luiz Inácio Lula da Silva, a pasta chegou a autorizar o aborto em casos de estupro até 9 meses de gestação mas, depois da repercussão negativa, voltou atrás. Em nota à imprensa, a ministra da Saúde, Nísia Trindade, disse que o documento não teria passado pelas esferas necessárias e nem pela consultoria jurídica da pasta.
Ainda assim, em março, para impedir de vez o aborto em gestações avançadas, o Conselho Federal de Medicina (CFM) editou resolução proibindo a assistolia em gestações com mais de 22 semanas e decorrentes de estupro.
A assistolia é um procedimento prévio ao aborto, no qual antes de retirar o feto, para garantir que ele saia do útero sem vida, é injetada nele substância que provoca uma parada cardíaca.
Para além disso, é um método doloroso em que não há possibilidade de anestesia (como ocorre quando utilizado para a eutanásia de animais, por exemplo), sendo também considerado cruel e desnecessário. Com a assistolia, a mulher não deixa de passar por uma espécie de parto, mas com o feto morto.
Em maio, a pedido do PSOL, o ministro Alexandre de Moraes suspendeu a resolução do CFM, sob o argumento de que a lei brasileira não traz um limite temporal de 22 semanas de gestação nas hipóteses em que o aborto não é punido – estupro, risco de vida para a gestante ou anencefalia.
Essa decisão monocrática, ainda não confirmada pelos demais ministros do STF, acabou dando ao Conanda lastro jurídico para a previsão de realização do aborto em crianças vítimas de estupro com gravidez avançada.
“O limite de tempo gestacional para realização do procedimento não tem previsão legal, não podendo ser aplicado como um critério pelos serviços para a realização do aborto, mas tão somente para identificação do método a ser utilizado conforme evidências científicas e recomendações da OMS”, diz a minuta da resolução.
Para a presidente do Movimento Brasil Sem Aborto, Lenise Garcia, a OMS mudou a própria definição o aborto. E isso, para ela, não deveria mudar automaticamente, muito menos na forma de uma resolução do Conanda, o modo como a legislação brasileira é aplicada.
“Não se pode mudar a definição de uma palavra e querer que isso afete uma legislação que foi escrita muito antes. A legislação brasileira não define até que mês o aborto pode ser feito porque não precisava. O próprio termo aborto já se referia ao que era internacionalmente reconhecido como sendo 22 semanas. Então, não posso de repente mudar essa definição e querer que essa nova definição afete todas as legislações de todos os países”, diz ela.
Para a advogada e professora Angela Gandra, ex-secretária nacional da Família no governo Bolsonaro, a resolução do Conanda se aproveita da brecha aberta pelo STF que, na prática, permitiu o aborto após 22 semanas de gestação.
“Nada disso entraria no nosso ordenamento jurídico se não tivesse ativismo judicial”, diz Angela Gandra. “O Conanda está tentando um caminho paralelo, agindo como o governo, que é abortista”, completa. Para ela, regras relativas ao aborto deveriam sempre partir do Legislativo, e desde que para proteger a vida. “Se quiser legislar, é para proteger a vida. Direitos fundamentais, como o direito à vida, não se discutem”, diz ela.
Quando o feto tem chance de sobreviver fora do útero, ativistas do movimento pró-vida costumam lutar para convencer vítimas de estupro a não abortar, para que o recém-nascido seja doado para outra família, caso a gestante não queira ter e criar um(a) filho(a). Essa possibilidade não é mencionada na minuta de resolução do Conanda.
O que dizem o Conanda e os defensores do aborto
Além de considerar a interrupção da gravidez decorrente de estupro um direito da mulher, o Conanda argumenta que, além de ser resultado de uma violência, a gestação é de risco para uma criança e adolescente.
“O acesso ao procedimento do aborto legal é uma garantia dos direitos à saúde, à vida e à integridade física e psicológica de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual”, diz um dos artigos da proposta de resolução do Conanda. “A gestação em crianças e adolescentes é um processo que representa alto risco à saúde física e psicológica, bem como resulta em impactos sociais significativos ao seu pleno desenvolvimento”, diz no trecho seguinte.
Para demonstrar isso, o próprio texto da resolução traz alguns dados do Brasil em sua introdução. Com base em registros do SUS, afirma que em 2023, seis menores de 14 anos e 129 adolescentes entre 15 e 19 anos “morreram de causas relacionadas ao ciclo gravídico puerperal”. “O aborto legal em gestações de crianças e adolescentes constitui parte das ações de prevenção a morbidade e mortalidade gravídico-puerperal em crianças”, diz a minuta.
O DataSUS registra que, no ano passado, nasceram 13.934 bebês de meninas com até 14 anos. Adolescentes com 15 a 19 anos deram à luz 289.093 bebês. Nos dois casos, os óbitos das mães ocorreram em 0,04% dos casos.
Como mostrou a Gazeta do Povo na primeira reportagem sobre a minuta da resolução, é verdadeira a premissa de que há risco de vida para uma criança grávida, mas há graus de variação conforme o caso individual. O risco pode ser reduzido se a gestante receber os devidos cuidados médicos, com um bom acompanhamento pré-natal.
“Numa criança ou adolescente, de fato o parto é mais perigoso que o aborto. Mas se for nessa lógica, mulher nenhuma pode engravidar. O maior risco de vida para a mulher, qualquer mulher, ocorre no momento do parto”, diz o obstetra e ginecologista Raphael Câmara, referência na área de gestações de risco.
O Conanda foi procurado pela reportagem para esclarecer e comentar os pontos específicos e delicados da minuta de resolução. O órgão confirmou que estuda a elaboração de uma resolução para garantir o atendimento de crianças e adolescentes vítimas estupro, mas afirmou que o conteúdo do texto ainda é discutido pelos conselheiros, em diálogo com outras instituições e especialistas. Por isso, não respondeu a várias perguntas sobre o conteúdo.
“Não é possível tratar do mérito a respeito de fragmentos das discussões ainda não consolidadas em um texto final”, afirmou, sobre os questionamentos feitos pela reportagem.
Em nota por escrito enviada à reportagem, o Conanda também justificou a iniciativa de elaborar a proposta de resolução. “Uma das principais missões legais do Conselho é dispor sobre o atendimento de crianças e adolescentes vítimas de violências sexual. O Conanda tem se debruçado ao longo dos anos a respeito das falhas e da ausência de serviços que garantam o atendimento de crianças vítimas de estupro”, afirmou.
Proposta do Conanda também dispensa BO e autorização judicial para o aborto
Além de poder ser realizado em qualquer tempo gestacional – portanto, até o limite dos nove meses de uma gravidez –, a minuta da resolução prevê que o aborto em crianças ou adolescentes vítimas de estupro seja realizado “independentemente” de lavratura de boletim de ocorrência, que registre a violência sexual, ou de autorização judicial. A proposta trata esses atos como “obstáculos indevidos ao acesso à interrupção da gestação”.
A dispensa do BO ou da autorização judicial já ocorre na prática. O Ministério da Saúde orienta hospitais a realizarem o aborto com base na palavra da mulher. Se ela disser que está grávida em razão de um estupro e que deseja abortar, o procedimento é realizado. O argumento mais usado em favor desse trâmite é que o Código Penal, ao não prever punição para o aborto em caso de violência sexual, não exige comprovação do estupro para ele seja feito.
Assim, a comunicação à polícia e o encaminhamento do caso à Justiça para punir o estuprador podem ocorrer posteriormente. Em 2020, sob o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Ministério da Saúde chegou a implementar a exigência do boletim de ocorrência, para tornar mais efetivo o combate aos estupros e desestimular falsos relatos, mas a portaria foi derrubada em 2023, na gestão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.