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Kátia Lenerneier tenta autorização da Justiça para engravidar do marido, vítima de câncer | Priscila Forone/Gazeta do Povo
Kátia Lenerneier tenta autorização da Justiça para engravidar do marido, vítima de câncer| Foto: Priscila Forone/Gazeta do Povo

Herança para filho concebido após a morte

Apesar de o ordenamento jurídico brasileiro não regulamentar a concepção após a morte, alguns dispositivos legais permitem interpretar que a criança gerada dessa forma seria considerada filho do depositante e, como tal, teria todos os direitos. A conclusão se baseia no artigo 1.597 do Código Civil, introduzido com a revisão de 2002. O texto elenca os filhos cuja concepção se presume ter ocorrido durante o casamento, o que antigamente se chamava de filhos legítimos. Na lista estão aqueles "havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido".

"Na parte de filiação, que implica na paternidade atestada na certidão de nascimento, o artigo resolve. Curiosamente, a revisão do código não acompanhou a realidade no capítulo em que trata de sucessão e herança", contrapõe a advogada de família Fernanda Pederneiras. O capítulo 3 da lei admite o direito à herança de pessoas concebidas antes da morte, caso em que se encaixariam os embriões conservados, mas ignora a concepção após a morte.

Por outro lado, a própria Constituição determina que os filhos dentro do casamento não podem ser tratados de forma diferente na herança. "A questão é complexa. Precisamos fazer uma construção doutrinária relacionando os dispositivos legais que apontam para a legitimidade do direito e, apesar de não haver decisões da Justiça sobre o assunto, estudiosos apontam nessa direção", sintetiza Fernanda.

Mais de 30 anos depois do primeiro bebê de proveta, as técnicas de reprodução assistida continuam a desafiar limites éticos e jurídicos. Uma das questões que o arcabouço legal ainda não sabe como tratar e sobre as quais os padrões éticos deixam lacunas é referente ao uso de sêmen, óvulos ou embriões conservados, após a morte do depositante. É o caso da professora Kátia Adriana Lener­neier, 38 anos, que luta para conceber um filho por meio de sêmen preservado do esposo, que morreu de câncer.

Eles tentavam ter filhos desde 2007, quando Kátia chegou a engravidar, mas sofreu um aborto natural. "Quando estávamos prontos para tentar de novo, veio a notícia da doença, no início do ano passado. Ele estava com melanoma em estado avançado e teve de se submeter a uma cirurgia para retirada do tumor e quimioterapia", lembra. O tratamento com radio e quimioterápicos tem o risco de 30% a 80% de deixar o paciente estéril e eles decidiram preservar o sêmen dele.

Apesar da doença, o casal resolveu fazer uma tentativa com acompanhamento médico. Kátia estava no meio do tratamento de fertilidade quando eles sofreram um novo baque: o câncer tinha atingido os ossos. O marido morreu seis meses depois, em fevereiro. "Quería­mos um filho e eu ainda quero. Mas quero dele, não de um desconhecido. Quero os olhos e os cabelos dele. Quero uma lembrança de nosso amor", justifica a professora. No entanto, Kátia esbarra no único parâmetro claro para a concepção após a morte: ela não tem a autorização expressa do marido.

O Brasil não possui nenhuma lei específica sobre reprodução assistida. A regulamentação se limita à resolução 1.385 de 1992 do Conselho Federal de Medicina, reforçada pelo novo Código de Ética Médica. No tópico 5, o texto diz que "os cônjuges ou companheiros devem expressar sua vontade, por escrito, quanto ao destino que será dado aos pré-embriões criopreservados, em caso de divórcio, doenças graves ou de falecimento de um deles ou de ambos". Já o Código veda ao médico "praticar procedimento de procriação medicamente assistida sem que os participantes estejam de inteiro acordo". A situa­ção é diferente de uma doação de gametas, em que o doador autoriza o uso para concepção em qualquer hipótese.

Ou seja, a lei não proíbe a concepção após a morte, mesmo sem autorização, mas o médico, único profissional que pode realizá-la, está impedido. "O congelamento de gametas é um indício da vontade de ter um filho no futuro. Mas a decisão que essa pessoa tomou na época pode não ser a mesma que tomaria hoje, ou que manifestaria antes de morrer, sabendo que estaria morto quando o filho nascesse", defende o médico Cícero Urban, membro do comitê de ética do Hospital de Clíni­cas de Curitiba. A mesma regra vale para embriões congelados, que contêm material de ambos os cônjuges.

Para contornar essa exigência, médicos e advogados concordam: só com autorização da Justiça. "Não há certeza sobre quem tem direito sobre o material genético após a morte, se esse direito se encerra com a vida da pessoa ou não. Como não há lei, a discussão acaba girando em torno da vontade do depositante", analisa a advogada de família Fernanda Peder­neiras. Segundo ela, não existem decisões de segunda instância sobre o assunto, mas estudiosos do assunto apontam nes­­sa direção.

Uma decisão favorável do juiz supriria a falta de autorização e permitiria que o médico realizasse o procedimento sem o risco de sanções profissionais. Mesmo que a Justiça ignorasse a discussão sobre a vontade e aceitasse teses alternativas. "O judiciário vai tratar de questões que ultrapassam a ética médica. Uma linha de estudo, por exemplo, defende que a viúva tem o direito de conceber um filho do marido, mesmo que ele esteja morto, uma vez que a negativa iria ferir sua dignidade humana", opina a advogada de família Dayana Sandri Dallabrido.

Outras implicações

Mas as implicações éticas e jurídicas vão além da autorização. A regulamentação não aponta o responsável por colher esse documento e nem sempre o depositante está ciente da norma. Para o corregedor-geral do Conselho Regional de Medicina do Paraná, Alexandre Gustavo Bley, as obrigações do médico incluiriam essa responsabilidade. "O Código visa a proteger o médico. Mas o congelamento é um procedimento médico e é obrigação do profissional esclarecer o paciente sobre as consequências do tratamento. Nesse caso, o que fazer se ele morrer", interpreta.

Além disso, uma linha da bioética, área interdisciplinar do conhecimento que aborda as questões envolvendo materiais genéticos, recomenda levar em conta o melhor interesse da criança que nasceria desse procedimento. "Para começar, a criança já vai nascer órfã. Mas é diferente de um filho de pai desconhecido ou que perdeu o pai depois de nascida. A criança será deliberadamente privada de um pai. Muitas vezes a pessoa não reflete sobre as consequências de uma decisão como essa", diz a geneticista Nilza Diniz, diretora da Sociedade Brasileira de Bioética.

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