Presa no dia 8 de janeiro enquanto orava no hall de entrada do Palácio do Planalto, a cuidadora de idosos Nilma Lacerda Alves permaneceu sete meses na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, conhecida como Colmeia. Ali, a baiana de 44 anos usou rolos de papel higiênico para escrever um diário com fatos marcantes vivenciados na prisão. “É muito duro para mim”, disse em entrevista à Gazeta do Povo, chorando muito. “Ler o que escrevi me faz passar por tudo de novo, porque sei que não fiz nada para estar ali”.
Em seu diário, Nilma cita situações de intimidação que viveu, frases impactantes que ouviu e datas em que suas colegas — a maioria idosas — passaram mal. “Uma amiga convulsionou várias vezes e não deram socorro para ela”, revelou, enquanto lia um trecho do diário durante a entrevista.
“Outra mulher que teve câncer de mama estava sem sua medicação controlada e começou a ter linfedema [obstrução na circulação linfática], e a gente só passava água”, continuou. “Eu mesma caí no banheiro dia 23 de março e rasguei minha mão por causa dos azulejos quebrados.”
Nos relatos, ela também destaca os horários do “confere”, em que as agentes penitenciárias solicitavam, sem aviso prévio, que todas as mulheres da ala fizessem fila diversas vezes ao dia. “A gente nunca sabia o horário certo e elas falavam que ‘se a gente não chegasse logo, seríamos colocadas junto com as outras presas, com a massa’”, conta, dizendo que colegas chegavam a fazer xixi nas calças, de tanto medo.
Inclusive, “no dia 8 de maio eu estava com muito sono porque lá não conseguíamos dormir direito, e cruzei os braços para frente [em vez de colocar as mãos para trás], sem perceber”, relata Nilma, lendo suas anotações dessa data. “A policial me disse assim: ‘da próxima vez, você vai para o castigo, interna!’”
Em seu diário, Nilma cita ainda detalhes a respeito da comida, que várias vezes estaria “incomível” devido a alimentos estragados que eram servidos e com bichos. Ela escreve ainda sobre dificuldades que as 164 presas da ala enfrentaram nas primeiras semanas de cárcere com apenas um vaso sanitário e uma pia disponíveis.
Além disso, um dos papeis descreve a visita que ela e as demais presas receberam do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes, e da ministra Rosa Weber. “Foi no dia 6 de março, quando nos falaram que ‘quem não tinha feito nada não ia pagar nada, quem tinha feito pouco pagaria pouco e quem tivesse feito muito, ia pagar muito’”, lembra. “Eles vieram com muitos policiais segurando armas de grosso calibre, e a inquietude tomou conta de toda a ala, ficamos desesperadas.”
A intimidação teria sido tão grande que ela conta que passou três dias sem dormir após a visita. “Aquilo mexeu muito com a gente”.
Saudade da filha e da única neta, que completou um aninho longe da avó
Além das dificuldades e humilhações, Nilma também escrevia sobre a saudade que sentia da única filha e da neta, que havia visto pela última vez com apenas seis meses. O “advogado diz que minha menina já começou a andar, saudade chegar a doer, e eu choro”, escreve no relato de 10 de abril. E a “Bruna está forte, cuidando de tudo. Obrigada, Senhor, por minha filha”.
Já em outra página, com data de 2 de maio, a cuidadora de idosos descreve como estava ansiosa para a primeira chamada de vídeo que teria com a jovem, após quatro meses sem contato. “Mas não avisaram minha filha e, como ela trabalha como enfermeira, não conseguiu atender”, lamentou, ao contar que oito dias depois pôde reencontrá-la pessoalmente na primeira visita da jovem ao presídio.
“Que emoção, que coisa boa, Senhor”, escreveu nas anotações. “Queria tanto voltar para casa com ela”, continuou com letras miúdas, necessárias para economizar o papel.
Suas anotações continuam e, em vários momentos, Nilma escreve sobre passagens bíblicas, momentos de oração e pedidos que fazia a Deus, clamando para sair dali. “Senhor, estamos esgotadas. Senhor, misericórdia”, escreveu.
Liberdade provisória e muitos traumas
Nilma conseguiu a liberdade provisória com tornozeleira eletrônica no mês de agosto e, desde então, recebe acompanhamento com psicólogo e psiquiatra, pagos por familiares.
De acordo com seu advogado de defesa, Hélio Junior, ela é funcionária pública concursada há 20 anos e “nunca sofreu qualquer processo administrativo ou responsabilização disciplinar, nem respondeu processo criminal”. Residente no município de Barreiras (BA) tentou, inclusive, desmotivar os vândalos que danificavam o Planalto no dia 8 de janeiro.
Além disso, em reportagem publicada pela Gazeta do Povo no último fim de semana, Nilma informa que tentou sair do palácio três vezes, mas foi “encurralada” pelas bombas de gás lacrimogêneo e tiros com balas de borracha.
Condenação sem provas e novo julgamento
Em julgamento virtual no STF, iniciado em 26 de setembro, Alexandre de Moraes votou pela condenação de Nilma a 14 anos de prisão em regime fechado. Não há provas nos autos de que a agente comunitária tenha praticado algum dos crimes apontados pelo ministro: dano ao patrimônio público, participação de associação criminosa armada ou tentativa de abolir violentamente o Estado Democrático de Direito.
No entanto, o ministro André Mendonça pediu destaque para seu caso, e um novo julgamento será marcado de forma presencial, em breve. Diante da esperança de ser ouvida, Nilma pede que as condutas sejam individualizadas e que a verdade prevaleça. “Já paguei muito, por coisas que não fiz. Então, peço que me julguem pelos meus atos”.
A Gazeta do Povo entrou em contato com o Ministério dos Direitos Humanos (MDHC) a respeito das situações descritas pela entrevistada e aguarda retorno.
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