Neste momento, os agentes da lei no Brasil, assim como juízes e advogados, vivem um dilema a respeito da validade das gravações ambientais – aquelas realizadas pessoalmente, com o uso de gravadores, sem o consentimento do interlocutor nem autorização judicial. Desde março deste ano há duas interpretações diferentes para esse tema.
A jurisprudência estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF) admite o uso, como prova da infração criminal, “da captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação”.
Acontece que, após a tramitação do chamado pacote anticrime, apresentado ao Congresso Nacional pelo então ministro da Justiça Sergio Moro, o texto chegou às mãos do presidente Jair Bolsonaro, que sancionou a lei, mas submeteu vetos a 24 dispositivos, incluindo um trecho, inserido pelos parlamentares na proposta inicial de Moro, que abria a possibilidade de limitar o uso das gravações ambientais exclusivamente à defesa.
Em seu veto, o presidente defendeu que, “ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa”, o texto “contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará”.
Posteriormente, 16 deles foram derrubados pela Câmara dos Deputados. Um desses vetos anulados foi precisamente o que se refere à gravação ambiental. E assim restabelece a Lei 9.296, de 1996, que permite que apenas a defesa utilize gravações ambientais realizadas sem autorização judicial como prova.
O veto ainda vai passar por votação no Senado. Enquanto isso não ocorre, a fim de devolver à legislação a jurisprudência do STF, o senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) apresentou em abril um projeto de lei que ainda não tem relator nem data estabelecida para votação.
Procurado pela reportagem, o senador não se manifestou. Mas na justificativa da proposta ele argumenta: “Limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa contraria o interesse público. Uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime”.
Uso corriqueiro das gravações ambientais
Gravações ambientais já foram utilizadas como prova contra políticos de expressão. Joesley Batista, um dos donos da JBS, gravou uma conversa com o então presidente da República, Michel Temer. No entendimento do Ministério Público Federal (MPF), a conversa indicava que Temer havia autorizado o silêncio do ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha. Em 2019, já ex-presidente, Temer seria absolvido da acusação de obstrução da Justiça.
Na época do veto da Câmara, o presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Fábio George Cruz da Nóbrega, se manifestou contra a decisão dos deputados. “As gravações ambientais feitas por um dos presentes sempre foram consideradas provas lícitas, regulares, de acordo com a jurisprudência consolidada do Supremo Tribunal Federal”.
São, diz ele, “instrumento importantíssimo para a investigação de crimes, especialmente aqueles que ocorrem às escondidas, em ambientes fechados, sem a presença, portanto, de público, de outras testemunhas. Caso a lei entre em vigor, ocorrências de agressões domésticas ou praticadas em ambiente de trabalho, por exemplo, serão seriamente prejudicadas. O mesmo ocorrerá com investigações relativas ao tráfico de drogas e à corrupção”.
Dispositivo questionável
Para o procurador de Justiça César Dario Mariano da Silva, mestre em Direito das Relações Sociais e especialista em Direito Penal, o veto do Congresso Nacional surpreendeu. “A gravação ambiental é um dos meios de prova mais empregados para apurar casos de corrupção. Um empresário que está sendo achacado, por exemplo, grava a conversa com um agente público corrupto, e assim se defende gerando provas”.
Ao inserir a mudança na lei, vetada pelo presidente, e depois derrubando o veto de Bolsonaro, o Congresso dificulta, portanto, a investigação de casos de corrupção. “Desde sempre a jurisprudência considerou possível a gravação ambiental. A decisão do Congresso tumultua o ambiente jurídico”. Da forma como está a situação agora, avalia ele, muitos casos vão se arrastar por anos. “O texto inserido pelo Congresso é ambíguo. Assim, os advogados de defesa vão questionar gravações ambientais apresentadas pela acusação e muitos casos tendem a acabar no Supremo”.
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