O nome da engenheira Enedina Alves Marques (1913-1981) andava tão apagado que não causaria espanto se alguém o tomasse por senha de uma sociedade secreta. A lista seleta dos que lhe prestavam culto se resumia aos decanos do Instituto de Engenharia do Paraná, o IEP, às senhoras do Clube de Soroptimistas para citar duas sociedades das quais fez parte , e chegava a uns poucos amigos e afilhados.
Até que súbito se tornou uma popstar. Virou bandeira flamejante no movimento negro e objeto de estudos de gênero, mesmo que nos seus 68 anos de vida não tenha demonstrado simpatia por nenhuma das duas causas. Há 15 dias, um post sobre a engenheira gerou 2 mil compartilhamentos instantâneos no Facebook. Em paralelo, uma campanha reivindica que o Edifício Teixeira Soares, ex-RFFSA, na Rua João Negrão, futuro Câmpus Rebouças da UFPR, passe a se chamar Enedina Alves Marques.
Se o apelo popular comover de fato a UFPR, Enedina vai abater dois pesos pesados de uma vez o engenheiro André Rebouças, que entre outras obras assina a Estrada de Ferro Curitiba-Paranaguá; e João Teixeira Soares, misto de engenheiro e herói que trabalhou para concluir a mesma ferrovia, no final do século 19. Qualquer que seja o resultado da peleja, Enedina já saiu vitoriosa: na fachada do câmpus ou não, é improvável que essa mulher negra e pobre, feita a primeira engenheira do Sul do Brasil, volte para a zona do esquecimento.
Tiros ao alto
A reviravolta em torno de Enedina começou bem longe da internet. De um lado, o historiador Sandro Luís Fernandes e o cineasta Paulo Munhoz deram início à pesquisa para o documentário A engenheira, no momento estacionado por falta de patrocínio. De outro, o historiador baiano Jorge Luiz Santana, radicado na capital, deu cabo à pesquisa de graduação Rompendo barreiras: Enedina, uma mulher singular.
Sandro e Jorge trocaram figurinhas e em tempo recorde levantaram um sem número de informações sobre a personagem. "Sou eternamente grato a essa mulher", repete Jorge. Cotista do curso de História da UFPR, descobriu a existência da engenheira numa conversa de corredor com o professor Magnus Pereira. Não deixa de ser irônico diz-se por aí que foi preciso um negro baiano para enxergar o ineditismo de uma negra curitibana, cujos méritos são insuspeitos até por quem sente urticárias a debates raciais. "Se a ideia é homenagear um negro, que seja a Enedina", protesta o biógrafo.
Na informalidade, Jorge Santana é uma daquelas figuras a um passo de organizar um motim. Quando se trata do pesquisador, veste a mortalha do rigor. Seu trabalho acadêmico oferece um inventário exaustivo sobre as famílias, escolas e empregos por onde Enedina andou, nunca carregada de liteira, como se sabe.
Não foi pequeno fardo carregado para que conseguisse se formar na Escola de Engenharia. Há indícios de que tenha sofrido racismo no ambiente acadêmico. Não lhe faltam, porém, reconhecimentos em vida. No ano de 1961, o sociólogo Octavio Ianni veio a Curitiba, entrevistá-la para a pesquisa Metamorfoses do escravo. Outro instante mágico, na mesma época, foi a promoção recebida do governador Ney Braga, alçando-a ao piso salarial de um juiz. O benefício lhe garantiu uma aposentadoria respeitável, que soube nutrir com belas perucas, casacos de peles e viagens.
Motivo da bênção? "Os esforços de Enedina para a implantação da Usina Capivari-Cachoeira libertaram o Paraná da exploração energética estrangeira", responde Jorge. Essa passagem é também das mais deliciosas, digna de uma cinebiografia. Pequena e magra como um passarinho, a vaidosa Enedina ia à barragem vestida de macacão surrado, com uma arma na cintura, mandando tiros ao alto para se fazer respeitar pelos operários, que resistiam obedecer uma mulher, que dirá negra. Custou, mas ela se fez ouvir.
Perfil - Morte solitária gerou comoção e reação na sociedade curitibana
Em agosto de 1981, a engenheira Enedina Alves Marques, então com 68 anos, foi capa dos jornais sanguinolentos de Curitiba. Um deles, a estampou de camisola levantada, deitada à cama, como se fosse vítima de um assassinato passional. Não era nada disso tinha sofrido um ataque cardíaco.
Solteira e sem filhos, não havia ninguém para socorrê-la nos quartos amplos do Edifício Lido, na Rua Ébano Pereira, Centro de Curitiba, onde morava depois de viver um período no Edifício Tijucas. Os mais próximos pensavam que ela estava viajando o que fazia com frequência, sem avisar. A desconfiança veio quando não compareceu à festa de aniversário de uma afilhada.
O desrespeito da mídia marrom teve um efeito instantâneo em especial sobre os associados do Instituto de Engenharia do Paraná. Notas de repúdio foram publicadas na imprensa, lembrando os feitos de Enedina e, sobretudo, sua superação. Filha de uma lavadeira e de um pai ausente, cursou escola Normal no Instituto de Educação; lecionou em várias cidades, como Rio Negro; fez o Madureza e pagara a Universidade do Paraná então obrigando taxas para os alunos , com seus préstimos de doméstica. Tinha ao seu lado, nas carteiras, os bem nascidos do estado.
Formou-se em 1945 e fez bela carreira no governo. Além da usina Capivari-Cachoeira, que leva sua marca, tem no currículo a construção de umas tantas escolas, como o Colégio Estadual do Paraná, e a CEU Casa do Estudante Universitário.
Segundo consta, seus pares demoraram a engoli-la. Tampouco Enedina fazia o tipo dócil. Enérgica e rigorosa, impunha-se e enfrentava do professor que a reprovou de forma arbitrária na faculdade aos amigos que não entendiam sua determinação em ser engenheira. Devia se conformar em ser a professorinha, diziam. Até hoje sua escolha é um mistério.
O mesmo se diga de seu comportamento independente. Podia estar entre as mais elegantes do Clube das Soroptimistas e ao mesmo tempo apitar os jogos de futebol dos amigos engenheiros. Não se furtava de beber socialmente com eles, no bar, para inveja das mulheres de seu tempo. E de soltar impropérios que a fariam ser taxada de preconceituosa. "Era livre", resumem os seus.
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