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Em meio à mobilização recente a respeito das eleições para o Conselho Tutelar em todo o Brasil e das denúncias de irregularidades em diversas cidades do país, um caso no Oeste do Paraná chamou a atenção. Na cidade de Foz do Iguaçu, conhecida pelas famosas Cataratas, a regra para concorrer na eleição para o Conselho Tutelar é clara: é preciso comprovar “experiência mínima de um ano na promoção, proteção ou defesa dos direitos de crianças ou adolescentes”. No entanto, moradores tiveram acesso aos documentos apresentados pelos candidatos e não viram essa comprovação.
O caso foi denunciado ao Ministério Público do Paraná (MP) em Foz do Iguaçu para que os documentos fossem verificados, mas o órgão arquivou a denúncia sob o argumento de que o prazo para isso teria acabado em 16 de junho de 2023.
“Os fatos apresentados nem existiam nessa data, pois a convocação para que os candidatos anexassem os documentos exigidos pelo edital foi publicada em julho de 2023 e concluída em 15 de agosto, dois meses após o prazo citado pelo MP”, explica a comerciante Sandra Aparecida, autora da denúncia. Ela entrou com recurso solicitando novamente a investigação, e o caso foi encaminhado ao Conselho Superior do MPPR.
Segundo a moradora de Foz, o documento entregue ao MP cita oito casos — inclusive de quatro funcionários comissionados da prefeitura que foram eleitos e já estão diplomados como conselheiros tutelares da cidade. “Eles apresentaram declarações de secretarias, e um colocou até os holerites como comprovação do cargo, mas não citam funções diretas no atendimento de crianças e adolescentes”, aponta a paranaense, de 55 anos, ao explicar que o edital exige comprovação da experiência mínima de um ano para concorrer às vagas do Conselho Tutelar de Foz do Iguaçu.
Outro candidato citado na denúncia, de acordo com Sandra, anexou aos documentos um comprovante de cargo comissionado na prefeitura de Foz como diretor de Trânsito e Sistema Viário do Departamento de Transportes (FozTrans). Nessa declaração, o homem enumera 23 atribuições que tinha na área, entre fevereiro de 2021 e novembro de 2022, mas nenhuma está relacionada a crianças ou adolescentes.
“Depois que foi considerado inapto pela banca examinadora, entrou com recurso afirmando que uma de suas funções era ‘promover educação e segurança no trânsito em escolas públicas e privadas’, algo que não fica claro nas funções descritas no documento oficial”, explica a denunciante.
Ela informa que o homem também apresentou fotos da Escola de Trânsito do FozTrans em que aparecem professores e alunos do projeto. “E, mesmo sem participar diretamente com as crianças pelo período de um ano, foi considerado apto para concorrer ao cargo de conselheiro tutelar”, aponta Sandra, ao questionar como o trabalho realizado por terceiros teria sido aceito para comprovar experiência nesse caso.
A denúncia cita ainda a situação de candidatos que não se elegeram, mas apresentam supostas irregularidades na documentação exigida para concorrer na eleição. “Um deles, por exemplo, anexou declaração citando uma Oficina de Sabão durante evento com duração de 21 dias”, afirma a autora da denúncia.
A mesma pessoa também anexou declaração de estágio no Conselho Municipal de Juventude (Conjuve) de Guaíra, em São Paulo, mas o documento não apresenta timbre ou carimbo da instituição, não especifica atividades realizadas e nem traz data de início e término. “Só informa que participou da entidade ‘no ano de 2014 durante qualificação em Administração’, e isso não comprova experiência direta com crianças”, aponta.
No entanto, a Gazeta do Povo teve acesso a uma decisão do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMCA) de Foz do Iguaçu a respeito dos documentos apresentados por um candidato em 2023, na qual o órgão afirma que é preciso citar “data inicial e final da experiência” apresentada.
Nessa decisão, a banca examinadora apontou irregularidades na documentação e afirmou que a comprovação mínima de um ano na promoção, proteção ou defesa dos direitos da criança ou adolescente foi considerada insuficiente porque “não detalha o tempo de atuação, sinalizando apenas ‘no ano de 2014’”. Esse candidato foi considerado inapto, e não concorreu na eleição para o Conselho Tutelar.
A reportagem tentou contato com o Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente por e-mail, telefone e WhatsApp para solicitar esclarecimentos, mas foi informada de que “os procedimentos relacionados aos processos do CMDCA [estavam] suspensos temporariamente no período de 18/12/2023 a 31/01/2024”. Após essa mensagem, a instituição informou que o e-mail "foi encaminhado para a análise da mesa diretora". O espaço segue aberto para manifestações.
Advogados afirmam que há indícios de irregularidades
De acordo com a advogada de família Rosana Rabelo, que teve sua candidatura impugnada em São José dos Campos (SP), e acompanha os embates jurídicos de conselheiros tutelares em diferentes cidades do Brasil, as situações descritas pela denunciante apresentam “irregularidades nítidas”. “Isso porque o edital exige experiência mínima de um ano trabalhando com crianças e adolescentes com comprovação em Carteira de Trabalho, contrato ou, no caso de OSC, registro da entidade no Conselho Municipal”, explica.
Outro advogado procurado pela reportagem - que preferiu não se identificar por ser morador de Foz do Iguaçu - pontua que “o edital tem força de lei, então tem caráter objetivo que deve ser cumprido”, sem espaço para dúvida no momento de aceitar, ou não, a documentação exigida. “Ou você tem os requisitos para ser candidato, ou não tem”.
Esse especialista em Direito Civil aponta ainda que o prazo para realização da denúncia não pode acabar, “pois o edital fala ‘a qualquer tempo’ e porque se trata de matéria de ordem pública que deve ser investigada”. Inclusive, ele aponta que o Artigo 8º do edital a respeito da “falsificação de declarações ou de dados e/ou outras irregularidades na documentação” determinam cancelamento da inscrição e anulação de todos os atos dela decorrentes, “em qualquer época”.
Entretanto, Sandra apresentou essa denúncia no dia 13 de dezembro de 2023, mas ela foi arquivada pelo MP cerca de 48 horas depois. Procurada pela reportagem, a 15ª Promotoria de Justiça de Foz do Iguaçu argumentou que o prazo realmente foi encerrado em 16 de junho de 2023 e que a denunciante precisa procurar primeiramente o CMDCA, “órgão responsável pela apuração das demandas”.
O MP informou também que “o requerimento de Sandra é inconsistente em demonstrar falsidade, inexatidão e irregularidades que justifiquem a aplicação do artigo 8º” e que “fica a critério da senhora [repórter] ou dos advogados consultados apresentarem requerimento para a devida instauração”.
Associação de Conselheiros Tutelares do PR diz que eleição em Foz deveria ser anulada
De acordo com a Associação dos Conselhos Tutelares do Paraná (Actep), o caso de Foz do Iguaçu pode ser caracterizado como uma “vergonha”, pois prejudica a principal função do conselheiro tutelar, que é atender de forma adequada crianças e adolescentes, priorizando seus direitos.
“O conselheiro, inclusive, deve fiscalizar programas de assistência que visem a infância e adolescência, e precisa estar capacitado para esse trabalho”, garante o presidente da entidade, Claudio Aparecido Ferreira, que enviou ofício ao MP nesta segunda-feira (5) solicitando providências. "Após tudo devidamente apurado e comprovado, acreditamos que a medida correta seja pedir anulação do pleito", afirma o documento.
Segundo ele, isso pode ocorrer porque, além dos problemas relacionados aos comprovantes de experiência exigidos, existiriam outros indícios de irregularidades no processo realizado em Foz, como duas conselheiras eleitas na cidade – uma professora e uma psicóloga – terem sido impugnadas “sem justificativa razoável”.
“Em um dos casos, inclusive, o denunciante é o mesmo suplente que assumiu o lugar dela, e que atuava como professor na entidade de um dos representantes do Conselho que votou pela impugnação”, apontou Ferreira. O caso também foi mostrado pela Actep ao MP do Paraná em Foz do Iguaçu, e a Gazeta do Povo teve acesso ao documento.
Nesse ofício, a associação cita a conselheira Silvana Rodrigues, impugnada devido a um vídeo em que um vereador da cidade aparece segurando “santinhos” de um candidato, sem dizer nome, número ou características da pessoa, mas afirmando que começava com “S”.
Em entrevista à Gazeta do Povo, Silvana afirma que foi reeleita como conselheira tutelar da cidade com 536 votos e realizou sua campanha de acordo com as regras do pleito. “E em relação ao vídeo do vereador, meus advogados fizeram a defesa e eu até sugeri que, se fosse para me punir pelo ato de outra pessoa, que fosse com multa ou advertência, mas mantiveram a impugnação”.
Ela afirma também que outros candidatos tiveram campanha realizada abertamente por autoridades do município, inclusive com vídeos citando nome e informações. “E foram os próprios eleitores indignados que nos trouxeram esses fatos, pois as regras precisam valer para todos”, diz, reiterando que a denúncia que levou à sua impugnação é “genérica”, baseada em um vídeo que não mostra sua foto, nome ou número.
Assim como ela, a professora Leila Aparecida Bencke, eleita em 3º lugar na cidade de Foz do Iguaçu com 777 votos, também teve candidatura impugnada. Segundo o relatório do processo, o motivo foram postagens que apoiadoras teriam realizado no WhatsApp contra outro candidato.
Leila afirmou não conhecer pessoalmente as mulheres citadas, apenas pelas redes sociais, e nem compactuar com atos difamatórios, mas o denunciante afirmou que ela faria parte do grupo citado e que teria curtido postagens das mulheres. A professora foi responsabilizada, e a pena foi a impugnação, tirando seu nome da lista de candidatos eleitos para que um suplente assumisse.
Segundo o presidente da Associação dos Conselheiros do Paraná, essas situações indicam suposto favorecimento e, como a 15ª Promotoria de Justiça de Foz do Iguaçu negou as denúncias, uma ação popular deve ser aberta nos próximos dias.
“Isso precisa ser investigado e divulgado porque, se aconteceu aqui em Foz, pode ter ocorrido em diversas cidades do Brasil”, pontua Ferreira, ao afirmar que “quem perde com isso são as crianças e adolescentes, que precisam de conselheiros tutelares realmente preparados”, finaliza.