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Dezenas de conservadores eleitos para trabalhar nos conselhos tutelares não assumiram seus cargos sob acusações de “abuso religioso”, incluindo a candidata mais votada do Brasil desde 1990| Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Outubro marcou um ano da maior eleição para conselheiros tutelares desde a criação do cargo em 1990, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A campanha em 2023 teve grande repercussão nas redes sociais e resultou em uma vitória expressiva de candidatos conservadores e, concretamente, cristãos. Muitos deles, no entanto, nunca assumiram o cargo ou foram retirados da função após denúncias de "abuso de poder religioso”. Outros, eleitos, sofrem pressões e estão com dificuldades para defender as crianças de ideologias nos conselhos tutelares.

A Lei Federal nº 8.069, que institui o ECA, não impede a participação de representantes religiosos no Conselho Tutelar (CT). No entanto, a resolução nº 231 de 2022 do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente), que regulamenta as eleições para conselhos tutelares, incluiu um dispositivo – considerado inconstitucional por juristas – que prevê a possibilidade de questionar uma candidatura em caso de financiamento por entidades religiosas ou de veiculação de propaganda em templos de qualquer religião.  

A cláusula, que fere o direito de liberdade religiosa, foi mencionada para impugnar candidatos que tiveram algum apoio religioso. Candidaturas foram questionadas por diversas situações, como casos em que pastores pediram orações durante o culto ou pelo fato de eleitos agradecerem a vitória em suas igrejas. 

“É claro que organizações da sociedade civil, religiosas ou não, podem querer participar do processo de escolha dos conselheiros. A nossa sociedade, segundo a Constituição Federal, deve ser plural, permitindo às mais variadas organizações, participar do processo político”, afirma Alessandro Chiarottino, professor de Direito Constitucional e doutor em Direito pela USP.  

“A vedação de participação política baseada na filiação religiosa é, portanto, absolutamente inconstitucional. É preciso lembrar que o Brasil é um estado laico (ou seja, que não favorece particularmente um tipo de crença, nem possui religião oficial), e não um estado laicista (que procura excluir a religião da esfera pública).” 

André Amaral, do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), acredita que a impugnação dos cristãos põe em risco a diversidade e a liberdade de expressão no debate público, além de sugerir uma perseguição sistemática. “O sistema político brasileiro precisa evoluir para garantir uma sociedade mais justa, onde todas as ideologias, crenças e visões de mundo possam coexistir em um espaço de respeito e debate livre.”

“Do ponto de vista jurídico, não há um impedimento explícito que proíba um pastor ou líder religioso de abordar temas políticos durante um culto”, continua Amaral. “Quanto às orações, se uma pessoa crê em Deus e decide, em um momento público ou privado, orar em agradecimento ou pedir orientação divina, essa prática é protegida pelas garantias constitucionais.” 

Candidata mais votada no Brasil teve candidatura impugnada após pastor pedir votos em culto

Entre os impugnados por serem conhecidos em suas igrejas está a candidata mais votada do Brasil. Com 7.004 votos, a advogada cristã Rosana Rabelo, de São José dos Campos, em São Paulo, nem chegou a tomar posse.  

A acusação veio de uma ex-conselheira tutelar por dois mandatos. Ela apresentou um vídeo ao Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA-Rio) em que um pastor pedia votos para Rosana. A cristã recorreu da decisão, apontando não ter infringido nenhuma lei, e aguarda a decisão. 

“Para que a irregularidade ocorra, é necessária uma intenção clara do candidato e uma ação direta dele em relação aos apoiadores, levando ao abuso”, diz Rosana. “Para lidar com a magnitude que a eleição assumiu, eu precisaria ser onipresente. Se a população desconhecia a eleição, imagina suas regras.”  

Segundo a conservadora, o esforço das igrejas e da população de sua cidade para eleger cristãos aumentou em 24 de setembro, após uma progressista ser apresentada na Expo LGBTQIA+ Mônaco, evento patrocinado pela Secretaria Municipal de Saúde, como a candidata ao Conselho Tutelar representante dessa comunidade na “proteção das crianças trans”.  

Na ocasião, o vereador Thomaz Henrique (Novo-SP) chegou a cobrar do prefeito Anderson Farias (PSD), recém-reeleito, explicações sobre a presença da candidata durante o evento. O parlamentar também entrou com um pedido de impugnação da candidata que incentiva o movimento de crianças trans, mas não foi acatado. A progressista foi eleita e está trabalhando no CT de São José dos Campos. 

Foto: Rosana Rabello é casada há 16 anos com o ex-zagueiro de futebol Alex, com quem tem um filho, João Pedro, de 14 anos: “Não existe estado e sociedade sem família”, afirma a advogada cristã

Este ano, Rosana tentou uma vaga na Câmara dos Vereadores pelo União Brasil, mas não obteve votos suficientes.  

“Caçada velada” 

Embora não haja um levantamento oficial sobre quantos dos 30,5 mil eleitos em todo o Brasil tiveram suas vitórias contestadas, os conservadores afirmam que existe uma “caçada velada” para remover do serviço público aqueles que se opõem à erotização infantil, à ideologia de gênero, à linguagem neutra e a outras pautas progressistas.  

Apesar de alguns candidatos da esquerda também terem enfrentado denúncias de supostas irregularidades político-partidárias, a reportagem não encontrou impugnação a essas candidaturas.  

Na cidade do Rio de Janeiro (RJ), foram 13 impugnações, sendo duas delas ocorridas nos últimos quatro meses, incluindo a de um pastor.  

No bairro de Campo Grande, na Zona Oeste da cidade carioca, três dos cinco eleitos não assumiram a função, sendo dois deles cristãos declarados.  

Um dos casos mais repercutidos foi o do pastor Joel Serra, que viu os votos que o elegeram para a unidade da Barra da Tijuca e Recreio dos Bandeirantes, também na Zona Oeste, "derreterem".

A impugnação foi baseada em um vídeo do pastor Josué Valandro Jr., da Igreja Batista Atitude, da qual a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro (PL) já foi membro. Nele, o religioso pediu que orassem por seu colega às vésperas da eleição.  

“Ele só fez uma oração em um culto, não pediu voto e não postou o vídeo”, ressaltou Joel. “Nenhum pastor manifestou apoio a mim. Inclusive, eu nem estava no local. Fiz minha defesa, fui notificado e, antes da oitiva, já publicaram a impugnação. Não existe uma lei que estabeleça abuso de poder religioso.”  

A oração de Valandro foi gravada por um anônimo e publicada em sites de notícias.  

Assim como outros, Serra foi impugnado na esfera administrativa pelo CMDCA-Rio e também enfrenta uma ação acolhida pelo Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ).  

No mês passado, quase um ano depois, a promotora do MPRJ, Geisa Lannes da Silva, pediu a extinção do processo que havia sido aberto pelo próprio órgão.  

“Ainda tenho esperanças de assumir o cargo e de ser indenizado por danos morais devido a esse impedimento em um processo totalmente ideológico e equivocado”, afirma o pastor, que aguarda o parecer final da Justiça.  

Agradecimento custou a vaga 

A 120 km da capital fluminense, Ramon Gonzales, de 29 anos, segundo mais votado da cidade de Vassouras (RJ), no Vale do Café, também foi alvo de contestação devido a dois vídeos: em um deles, o pastor Saulo dos Santos, em ambiente fora da igreja, pediu votos para o amigo; no outro, o próprio eleito fez uma oração de agradecimento pelos votos recebidos.

“No dia seguinte à eleição, agradeci aos pastores e a um público específico”, contou. “No final, fiz uma proclamação de fé e pedi para respeitar a força da igreja do Senhor, foi por isso que me impugnaram.”   

Foto: Ramon González, casado e pai de uma menina de três anos, Kézia: “Acredito que só família pode cuidar de família”, disse.

Ramon entrou com um recurso e aguarda a decisão da primeira instância do Tribunal de Justiça de Vassouras.   

“Quero honrar os eleitores que saíram de casa em um dia chuvoso para apoiar minha candidatura, ser relevante para as crianças da cidade e provar que sempre fui uma pessoa idônea”, garante.   

O medo silencia 

No Maranhão, estão dois cristãos que tiveram seus recursos acatados pela Justiça até o momento e atualmente trabalham sob liminar.

“O desafio é grande”, afirmou um deles, que preferiu ficar anônimo. “Estamos fazendo nosso trabalho diariamente, mas não está fácil. É muita perseguição.”

O medo também foi a justificativa de outros cristãos para não se expor. “Fui perseguido desde o dia em que entrei lá”, relatou um homem ligado à igreja Batista. Eleito com a maioria dos votos em uma cidade industrial de porte médio do Sudeste, ele foi impugnado quatro meses após a posse, acusado de ser funcionário público, o que violaria as regras.  

“Comprovei que já estava desligado do funcionalismo público há tempos, mas não adiantou. Nem tentei recorrer; estava esgotado”, acrescentou. “Não posso dar entrevistas, tenho medo de retaliação.”  

Criança “gay”  

Alguns foram impedidos ainda durante o processo seletivo, como Samuel Serra, de Gravataí, na região metropolitana de Porto Alegre (RS).   

“Disseram que eu não poderia concorrer porque minha certificação de voluntariado era de uma entidade ligada à religião evangélica, o que feriria o estatuto”, contou. “Mas isso caiu por terra, pois outros na mesma situação apresentaram recurso e tiveram o pedido aceito.”  

Samuel acredita que o verdadeiro motivo de seu impedimento foi uma publicação em sua rede social. Pouco antes de se inscrever para a eleição, ele compartilhou um vídeo na 34ª Feira do Livro de Gravataí, em que aparecia diante do banner oficial do evento uma menina envolta na bandeira do arco-íris e o slogan: “Letras & Artes: todas as cores das palavras.”  

Ele questionou se o uso das cores e do símbolo LGBT ao lado de uma criança seria coincidência ou parte de uma agenda em curso: “Não afirmei nada, fiz apenas uma pergunta”, disse.   

Segundo seu relato, foi acusado de promover propaganda enganosa e de não ter condições de atender a uma criança “gay” por ser considerado “homofóbico”.   

“Defendi que não existe criança ‘gay’, pois não podemos sexualizar crianças”, contou Samuel.   

Prestes a se formar em História, o administrador de empresas afirma atuar há quatro anos como voluntário na assistência de sua igreja a 250 crianças da periferia.   

“Temos resgatado muitas crianças e adolescentes das drogas”, disse. “A sociedade clamava por alguém que conhecesse aquela comunidade e me coloquei à disposição. Dos 10 conselheiros que temos, nem 50% age à altura do que a nossa precisa.”  

Este ano, Samuel também tentou uma vaga como vereador pelo PL, mas, assim como Rosana, não conseguiu ser eleito.   

Dois pesos, duas medidas? 

A candidata mais votada no Rio de Janeiro e a segunda em todo o Brasil, Patrícia Félix, reeleita com 5.997 votos, enfrentou múltiplas denúncias no MP por utilizar seu partido político, o Psol, como propaganda eleitoral na campanha para os conselhos tutelares.   

Entre as acusações, destaca-se a denúncia apresentada pela presidente da Associação Movimento Cidadão Presente, de Copacabana, Lúcia Ungierowicz.   

“Denuncie a Patrícia porque um dos preceitos do conselheiro tutelar é que não pode ter vinculação política”, disse Lúcia. “Além de filiada, ela já assinou denúncias contra pessoas de direita estando na posição de conselheira tutelar, o que é um absurdo. Esses conselheiros tutelares não têm chefe e são totalmente militantes.”

Lúcia Ungierowicz reclama por não ter sido ouvida pelo MPRJ, que, segundo ela, nunca respondeu à sua queixa e arquivou a denúncia. “É o ministério do povo, e eu sou povo”, acrescentou. “Quero que o MP trabalhe para mim também. O Judiciário está completamente comprometido com a esquerda. O MPRJ acata todos os pedidos do Psol, mas não faz o mesmo com os nossos.”

Outra denúncia contra Patrícia, igualmente arquivada, apresentou como prova reportagem do jornal O Globo publicada após as eleições que descrevia a conselheira como “advogada e educadora social militante, filiada ao Psol desde 2016”.

As acusações também mostram que, na véspera do pleito, Patrícia assinou uma carta compromisso com o Sindicato dos Professores do Município do Rio de Janeiro e Região (SimProRio), e compartilhou a ação em suas redes sociais.  

Para os opositores, isso configura irregularidade por tornar a disputa desigual em relação a outros candidatos.  

Os conservadores também mencionaram o pedido de votos feito pelos apoiadores de Patrícia. Dias antes da eleição, o internauta Ácaro Maurício publicou no Facebook: “Amigos do Psol, PT e do Partidão: alguma indicação para o Conselho Tutelar?” Em seguida, ele divulgou uma lista com o nome de Patrícia e outros candidatos da esquerda: Diana Nascimento, Cristiane Oliveira, Claudelice Silva e Leonardo Amatuzzi, todos foram eleitos.  

Uma trajetória de militância 

Em setembro de 2021, durante seu primeiro mandato como conselheira tutelar, Patrícia assinou a pré-tese apresentada no VII Congresso Estadual do Psol, que buscava definir os rumos do partido nos anos seguintes.  

Conforme o site do evento, as ações propostas tinham como objetivo derrotar a “extrema-direita” e o então presidente Jair Bolsonaro (PL).  

“Para enfrentar Bolsonaro e seu projeto neofascista, é necessário construir uma ampla unidade de ação com todos os setores democráticos”, sugeriu o texto.  

Em maio deste ano, a conselheira, que já ocupou um cargo comissionado em um gabinete parlamentar, usou a plataforma X, do bilionário capitalista Elon Musk, para divulgar o lançamento do Sindicato Estadual dos Conselheiros Tutelares do Rio de Janeiro (Secont-RJ).  

Embora os conselheiros tutelares não sejam reconhecidos como uma classe ou categoria, mas apenas como uma função pública e eletiva, a representação sindical foi instituída.   

“É uma grande honra estar à frente dessa organização como presidenta (sic), em um momento de grande importância na luta pelo fortalecimento da classe dos conselheiros”, destacou Patrícia no Instagram.   

Assim como os dois conservadores, Patrícia também foi derrotada este ano nas urnas em sua segunda tentativa de se eleger vereadora pelo Psol carioca.  

Contactada, a conselheira tutelar Patrícia Félix não teve disponibilidade em sua agenda para conceder a entrevista a tempo desta publicação, alegando estar de plantão nos dias propostos para a conversa. 

Órgãos em xeque 

Na polarização política, os conservadores acusam o Conanda e os CMDCAs — que organizam as eleições em cada cidade e são vinculados às Secretarias Municipais de Assistência Social — de agirem de acordo com suas ideologias.  

“Nossa briga é tirar isso do município”, disse o pastor Joel. “O Conselho Municipal não tem condições de organizar as eleições para o Conselho Tutelar.”  

O gaúcho Samuel concorda e completa: “Mudar a legislação é a única maneira para que esse tipo de violação do direito das pessoas de se candidatar não ocorra mais”.   

Durante o período eleitoral de 2023, o Conanda foi presidido pelo psicólogo Cláudio Augusto Vieira da Silva, que também era secretário nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente, vinculado à pasta do então ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida.   

Em 6 de setembro deste ano, Almeida foi demitido pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) após acusações de assédio sexual. Dias depois, Vieira da Silva foi exonerado devido a denúncias de assédio moral por parte de servidoras públicas.  

A trajetória de Vieira da Silva no Conanda é longa; em 2005, ele já representava a comissão temática de políticas públicas do órgão.  

Atualmente, o Conanda é liderado pela vice-presidente na época da eleição, Marina Poniwas, que se apresenta em suas redes sociais como “lésbica, feminista, batuqueira e psicóloga”.   

Procurados, o Conanda e os CMDCAs de São José dos Campos e Valença não responderam.  

A Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) do Rio de Janeiro enviou a seguinte nota: “O Colegiado do CMDCA [RJ] instituiu uma Comissão Eleitoral, com vigência entre setembro de 2022 a janeiro de 2024, que apurou os casos de denúncias contra os candidatos ao Conselho Tutelar e impugnou 13 candidatos. Ressaltamos que todas as informações pertinentes às eleições estão publicadas no Diário Oficial do Município”.

O presidente Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente de Gravataí, Antonio Silva, respondeu por e-mail à reportagem dizendo que irá se reunir com a Comissão Eleitoral para avaliar os questionamentos da reportagem e “dar os devidos encaminhamentos, caso sejam necessários”.

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