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Lei sancionada

Prisão, antecedente criminal e processo: consequências da lei de maus-tratos contra cães e gatos

cat and dog are friend. who is the boss (Foto: )

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A lei que aumentou a pena para maus-tratos contra cães e gatos (Lei 14.064/2020) - sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro na semana passada e que acrescenta o parágrafo 1-A ao artigo 32 da Lei 9.605/1998 - tem efeitos práticos que vão além da defesa desses animais domésticos. De acordo com a nova legislação, quem for condenado por esse crime poderá ficar preso pelo período que vai de dois a cinco anos de reclusão e terá de pagar multa. E é justamente o fato de a pena ter sido elevada que traz uma série de consequências legais, conforme explicam três especialistas ouvidos pela Gazeta do Povo. Mesmo com a importância da nova lei, os professores de Direito também apontam falhas no texto.

“A pena teve que ser fixada num “valor” que é considerado alto, de dois a cinco anos, para que a proteção de cães e gatos não fosse feita no âmbito dos Juizados Especiais, para que o investigado não obtivesse a chamada suspensão condicional do processo. Agora pode ter prisão em flagrante, inquérito policial, processo penal e jurisprudência. Nós não temos jurisprudência nos tribunais superiores sobre o crime de maus-tratos, pois sempre ficava nos juízos de pequenas causas”, explica o juiz federal Vicente de Paula Ataide Junior*, que é professor de Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e no Centro Universitário Internacional (Uninter).

Entenda o que muda:

Da detenção à reclusão

A punição para quem maltratar, abusar, ferir ou mutilar animais silvestres, exóticos, nativos ou domésticos - com exceção de cães e gatos -, de acordo com a Lei 9.605/1998, vai de três meses a um ano de detenção e multa. A professora Ana Paula Liberato**, do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, explica que a pena de detenção possibilita o cumprimento em regime aberto. Quando a pena não é superior a dois anos, há um crime de menor potencial ofensivo. Nesse casos, depois que a Polícia Militar faz a lavratura do boletim de ocorrência, que dá origem ao Termo Circunstanciado, o infrator terá de se apresentar ao Juizado Especial e poderá fazer a transação penal. Ou seja, se não for reincidente, passará a prestar serviços à comunidade ou fará o pagamento em cestas básicas, por exemplo.

Mas, no caso de cães e gatos, a sanção ficou mais pesada e não se aplicam mais as regras relacionadas ao Juizado Especial. Mais do que isso: a legislação agora já não fala em detenção e sim em reclusão. Com isso, quem for condenado terá que começar a cumprir a pena em regime fechado e, ao longo do tempo, poderá ser beneficiado com a progressão de regime.

Ainda assim, na visão do professor Juliano Roberto Silva Caetano de Oliveira***, do curso de Direito da Faculdade Estácio de Curitiba, dificilmente alguém ficará preso ao fim do processo por maltratar os pets. “No Brasil, condenação abaixo de quatro anos ‘não dá cadeia’”, afirma.

Do Juizado Especial ao processo

Nas circunstâncias dos crimes considerados de baixo potencial ofensivo, após o acordo de transação penal no Juizado Especial, o processo será arquivado quando a pessoa terminar de cumprir o que foi estabelecido. Como não chega à fase da denúncia, o acordo evita que o infrator passe a ter antecedentes criminais. Esse “registro” é feito quando a ação penal é ajuizada. Isso significa que, apesar de ter cometido um crime leve, após a transação penal, o autor do ilícito ainda seria considerado em um novo processo como “réu primário”.

Agora, no caso de cães e gatos, não é possível resolver questão no Juizado Especial, como já foi citado anteriormente. O crime passou a ser considerado de grande potencial ofensivo.

“Não cabe mais a transação penal nem a suspensão do processo. Mas, por causa do pacote anticrime, ainda é possível fazer um acordo de não persecução penal com o Ministério Público”, explica Oliveira. Esse acordo é feito para que o processo não seja iniciado e pode ser feito porque a pena mínima nesse caso é de dois anos - vale para todos em que a pena mínima é inferior a quatro anos. Para o professor da Estácio Curitiba, essa possibilidade é um dos pontos falhos da lei. Mas, para ter esse direito, também é preciso ser primário e providenciar a reparação do dano.

Outro ponto destacado por Ataide Junior é que a majoração da pena também servirá para combater crimes como a zoofilia. “Existem pessoas que são rotineiramente abusadoras de animais. E, inclusive, colocam [as imagens do crime] na internet. Esse tipo de atividade, especialmente com cães e gatos, vai sofrer um impacto”, afirma o juiz federal.

Reincidência e antecedentes criminais  

Como foi mencionado, com o agravamento da pena, o crime de maus-tratos contra cães e gatos passará a constar na ficha criminal do infrator. Nesse caso, se vier a praticar outro crime, já será considerado reincidente e perderá benefícios previstos em lei para quem é “primário”.

Por exemplo, se a segunda situação em que a pessoa se envolveu fosse considerada de menor potencial ofensivo, o infrator poderia resolver a questão no Juizado Especial. Mas, como já havia cometido um crime contra os pets, perdeu o direito a esse benefício.

Além disso, vale destacar que editais de alguns concursos públicos da área jurídica e das Forças Armadas exigem certidões negativas de antecedentes criminais. E há exceções previstas na lei trabalhista em que até as empresas podem exigir o documento.

Prisão em flagrante, fiança e estrutura

Oliveira explica que uma consequência da mudança na lei é que agora existe a possibilidade de prisão em flagrante para quem maltratar cães e gatos. Além disso, como a pena máxima ultrapassa quatro anos (é de anos anos nesse caso), o delegado não pode arbitrar fiança. A pessoa deve ficar presa e o somente o juiz pode decidir sobre essa questão.

“Duas prisões cautelares passam a ser possíveis. Além da prisão em flagrante, existe a possibilidade de prisão preventiva durante o processo”, acrescenta o professor da Estácio.

Além disso, segundo Ataide Junior, os trabalhos da polícia e do Ministério Público serão mais intensos para coibir o crime previsto na Lei 14.064/2020. Essa possibilidade, porém, traz ainda mais desafios à ação dos agentes públicos. Há estrutura para que isso seja feito?

Para o juiz, as delegacias do Meio Ambiente no Brasil terão de ser reestruturadas, já que precisarão de mais espaço, de mais policiais nas equipes e ainda mais capacitação para os servidores. No Poder Judiciário, a avaliação dele é de que o impacto não será tão grande. “O que nos preocupa é falta de condições, em alguns estados, da Polícia Civil. Por outro lado, Curitiba, especialmente, dá um exemplo para o Brasil”.

Ele destaca também as repercussões em outra área: a medicina veterinária legal. “Agora, como vai ter inquérito policial, vai ser indispensável que seja feita a perícia. Para constatação dos maus-tratos, do ferimento, da mutilação… A materialidade do crime vai ter que se aferida por laudo pericial. Abra-se um novo campo de trabalho para os médicos veterinários”, afirma o professor da UFPR e do Uninter.

Proteção a cães e gatos X a proteção aos humanos

Uma das críticas mais contundentes à Lei 14.064/2020 se dá pelo fato de a pena para maus-tratos contra cães e gatos agora ser mais alta do que a de alguns crimes contra as pessoas, como lesão corporal, que vai de três meses a um ano detenção.

“Eu não concordo [com a crítica]. Um erro não justifica o outro. Não é a pena para os maus-tratos contra esses animais que está alta. São as penas nos casos dos humanos que estão baixas”, afirma Oliveira.

Opinião semelhante foi apresentada pelo juiz federal. “Nós temos todo o direito penal construído para proteger o ser humano. E nós temos apenas o artigo 32 da lei de crimes ambientais para proteger a dignidade animal. A Constituição Federal proíbe a crueldade contra os animais [artigo 225]. Um crime contra a dignidade animal não pode ser considerado, como era, uma infração penal de menor potencial ofensiva”, salienta Ataide Junior.

Mas há juristas que discordam dos argumentos apresentados pelos entrevistados. "Nota-se, portanto, a completa ausência de proporcionalidade em relação aos demais crimes previstos na legislação brasileira", argumenta o advogado criminalista André Damiani, em entrevista ao site Consultor Jurídico (Conjur).

Além dele, a advogada e deputada federal Chris Tonietto (PSL-RJ) também criticou a nova lei por meio das redes sociais e fez uma alusão ao aborto. “Imagine um mundo onde as pessoas defendam a vida de bebês da mesma forma que o ovo de uma tartaruga; onde matar crianças seja considerado um crime tão grave quanto os maus-tratos a animais”, afirma a parlamentar.

De acordo com o Código Penal, a pessoa que provocar o aborto de uma gestante sem o consentimento dela, se condenado, pode pegar de três a dez anos de reclusão. E se for provocado pela própria mulher ou por alguém com o consentimento dela, a pena será de um a três a anos de detenção.

Proteção falha aos outros animais e novas leis ambientais

Para Ana Paula, que também é diretora-jurídica do Instituto Água e Terra, a lei é falha por não ampliar a proteção a todos os animais em situações de maus-tratos e crueldade. Segundo ela, grande parte dos crimes são cometidos contra os animais silvestres. “Se o objetivo [da nova lei] era tutelar de uma melhor forma a proteção da fauna, não deveria ter restringido [a ampliação da pena] a cães e gatos. Deveria ser uma regra padrão”, afirma a professora da PUCPR.

Na visão de Oliveira, a majoração da pena para maus-tratos contra cães e gatos prevista na lei de 2020 precisa ser comemorada, mas é só o primeiro passo. “As penas para os crimes ambientais são muito baixas na Lei 9.605/1998. Para muitos, é mais fácil pagar a multa do que corrigir a conduta lesiva ao meio ambiente. O dano ambiental no Brasil ainda vale a pena”, opina.

Ataide Junior concorda que é preciso avançar e afirma que o segundo passo que precisa ser dado é elevar as penas para todos os animais. Segundo ele, o texto aprovado e sancionado seria mais efetivo se tivesse ampliado a punibilidade para todos os animais ou, ao menos, para todos os bichos domésticos.

“Surpreendeu a aprovação e sanção do projeto que agora é a Lei 14.064. [Eleva] a pena do artigo 32 exclusivamente para cães e gatos. Acompanhamos o outro - PLC 134/2018 -, que é mais interessante, do nosso ponto de vista, porque aumenta pena para maus-tratos contra todos os animais. Mas consideramos que esse já foi um avanço. Pelo menos nesses dois casos, a repressão penal vai ser mais intensa”, afirma o juiz federal.

E ele vai além: é preciso que as leis sejam mais rigorosas também para combater o tráfico de animais. Um projeto de lei (4.400/2020) que cria os tipos penais de tráfico de animais silvestres e de associação criminosa contra a fauna foi protocolado na Câmara dos Deputados em 31 de agosto. O texto foi construído com o auxílio do Programa de Direito Animal da UFPR.

“Se você matar uma jaguatirica no Pantanal, a pena é de detenção de seis meses a 1 ano [prevista no artigo 29 da Lei 9.605/1998]. Não se deve reduzir a pena para maus-tratos contra cães e gatos. É preciso aumentar [a pena] para os demais crimes e corrigir essa desproporção dentro da lei de crimes ambientais ”, salienta o professor da UFPR e do Uninter.

Entrevistados

*Vicente de Paula Ataide Junior é juiz federal titular da 2ª Turma Recursal dos Juizados Especiais Federais do Paraná, em Curitiba. É professor da graduação e na pós-graduação Stricto Sensu em Direito na Universidade Federal do Paraná (UFPR). Também é coordenador do Programa de Direito Animal da UFPR e da especialização em Direito Animal do Centro Universitário Internacional (Uninter), que é uma parceria com a Escola da Magistratura Federal do Paraná (Esmafe). É mestre e doutor em Direito Processual Civil pela UFPR e pós-doutor em Direito Animal pela Universidade Federal da Bahia (UFBA).

**Ana Paula Liberato é professora do curso de Direito da Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUCPR), coordenadora da pós-graduação em Direito Ambiental da PUCPR, advogada e diretora-jurídica do Instituto Água e Terra, autarquia vinculada à Secretaria de Estado do Desenvolvimento Sustentável e do Turismo do governo Paraná. É mestre em Direito Ambiental pela PUCPR, e doutora em Educação Ambiental pela Universidad de la Empresa (Uruguai).

***Juliano Roberto Silva Caetano de Oliveira é professor de Direito Penal e Processo Penal na Faculdade Estácio de Curitiba e advogado. É especialista em Direito Penal pela Universidade Gama Filho e mestrando em Educação e Novas Tecnologias no Centro Universitário Internacional (Uninter).

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