A lógica dos defensores da transição de gênero é a de que a única forma de evitar um alto risco de suicídio entre jovens com disforia de gênero (sensação de inadequação com o sexo biológico) é injetar hormônios que bloqueiam a puberdade e, mais adiante, realizar cirurgias de redesignação sexual – medidas que são denominadas “afirmação de gênero”. Até pouco tempo atrás, contestar tal dogma era tido como o equivalente a colocar a vida dessas pessoas em risco.
Mas as rachaduras nesses pilares são cada vez mais evidentes. Ao passo que novas pesquisas questionam a eficácia da abordagem “afirmativa”, países europeus que foram pioneiros na implementação dessas medidas como políticas direcionadas à transição de gênero agora adotam uma postura mais cautelosa.
Premissas questionadas
Os estudos científicos sobre a melhor forma de lidar com a disforia de gênero estão longe de construir um consenso, o que leva décadas para acontecer. Como a literatura sobre o tema é relativamente recente, o debate está em aberto.
A Gazeta do Povo analisou artigos publicados em periódicos científicos que versam sobre transição de gênero de 2021 para cá e encontrou questionamentos aos dois estudos nos quais se baseia a defesa das terapias “afirmativas” – ambos foram feitos na Holanda e publicados em 2011 e 2014 por Annelou de Vries.
Segundo ela, os bloqueadores de puberdade, acompanhados de cirurgia de redesignação sexual, são eficazes em melhorar a saúde mental dos jovens com disforia de gênero, o que implicaria uma redução no número de suicídios. É o fundamento da tese de que, se um jovem tem uma dissintonia entre o sexo biológico e a sua identidade subjetiva, o melhor a se fazer é a transição de gênero em vez de tratar a condição psicológica ou psiquiátrica. Mas os estudos (o segundo deles, com 55 pessoas) são problemáticos – a começar pelo fato de que a única tentativa de reproduzir os experimentos, feita por pesquisadores britânicos, não obteve sucesso.
Um artigo publicado no Journal of Sex & Marital Therapy em janeiro deste ano aponta falhas graves na metodologia dos levantamentos de De Vries sobre transição de gênero. “Estes estudos holandeses sofrem de limitações profundas tamanhas que não deveriam jamais ter sido usados como justificativa para a promoção dessas intervenções na prática médica geral”, diz o artigo.
De acordo com os três cientistas que assinam o artigo, a pesquisadora holandesa e seus colegas selecionaram apenas os casos bem-sucedidos para incluir no estudo. Além disso, o estudo teria sido feito de tal forma que é impossível saber se as melhorias na saúde mental se devem à redesignação sexual ou à psicoterapia.
Poucos meses antes deste novo artigo, em uma carta publicada no Journal of the American College of Clinical Pharmacy, um grupo de cinco pesquisadores chamou atenção para a falta de provas a favor da eficácia dos bloqueadores de puberdade em adolescentes. Eles alertam para a possibilidade de danos ao desenvolvimento neurológico e enfatizam que essa abordagem acaba acorrentando a criança ou o adolescente a uma identidade de gênero que poderia ser temporária.
“Mais de 95% dos jovens tratados com análogos de GnRH [hormônio que libera a gonadotrofina e tem a capacidade de parar a puberdade] passam a receber hormônios do sexo oposto. Por outro lado, de 61% a 98% daqueles tratados apenas com apoio psicológico reconciliam sua identidade de gênero com seu sexo biológico durante a puberdade”, afirmam os pesquisadores.
A carta continua: “Vários países europeus que foram pioneiros na transição médica para jovens estão agora adotando uma abordagem mais cautelosa quanto ao uso de análogos de GnRH e hormônios do sexo oposto, depois que suas próprias análises de evidências não mostraram benefícios para a saúde mental e demonstraram uma profunda falta de conhecimento sobre os danos.”
Em um artigo publicado em 2021, a psiquiatra Alison Clayton, da Universidade de Melbourne, vai na mesma direção. Ela argumenta que apoiadores das terapias “afirmativas” supervalorizam as evidências a favor do método defendido por eles. Ela afirma que existe uma tendência preocupante na literatura sobre disforia de gênero: a supervalorização das evidências a favor das terapias de redesignação sexual. Além disso, ela aponta, as descobertas contrárias à prática acabam recebendo muito menos destaque em relação às que vão na outra direção.
Autismo
Outro campo em que a literatura científica tem avançado é a correlação entre disforia de gênero e autismo. Os dados já são conhecidos: em 2010, um artigo mostrou que 7,8% de crianças e adolescentes com disforia de gênero têm autismo, ante 0,6% do restante da população. Outro estudo de 2016 mostrou que 23% dos pacientes com disforia de gênero tinham Síndrome de Asperger.
Avançando sobre estudos que apontavam uma correlação entre autismo e disforia de gênero, um novo artigo publicado na revista científica Autism identificou que o diagnóstico de disforia de gênero era mais comum entre autistas com menor grau de apoio familiar. Ou seja: fatores sociais podem explicar ao menos parte dos casos dessa disforia.
Países repensam posição sobre transição de gênero
Nos últimos meses, alguns países europeus têm recuado em suas políticas de apoio à combinação de bloqueadores de puberdade e cirurgias de redesignação sexual.
A Suécia, o primeiro país a legalizar a redesignação sexual, decidiu no ano passado aumentar o rigor com intervenções desse tipo em menores de idade. As terapias hormonais foram interrompidas, exceto em casos extremos. O Comitê Sueco de Avaliação Médica e Social (SBU), que funciona como uma espécie de agência regulatória, não encontrou evidências de que o tratamento hormonal trouxesse benefícios à saúde mental.
Em maio de 2021, o Hospital da Universidade Karolinska, em Estocolmo, já havia proibido o uso de bloqueadores de puberdade. Também há um ano, a Academia Nacional de Medicina da França aprovou uma resolução (por 59 votos a 20) que demonstra preocupação com o aumento repentino na procura por intervenções desse tipo, especialmente entre adolescentes.
O documento ainda afirma que “não há teste para distinguir entre disforia de gênero persistente e disforia adolescente transitória”, e que “o risco de diagnóstico excessivo é real, conforme evidenciado pelo número crescente de jovens adultos que desejam desfazer a transição.”
Uma postura semelhante foi adotada pelo Reino Unido. No ano passado, o governo britânico decidiu fechar as portas de sua única clínica de gênero, a Tavistock. A clínica havia aberto as portas em 1983. Nos últimos anos, o número de atendimentos havia saltado rapidamente: de 138 em 2010 para 2.383 entre 2020 e 2021. Em 2020, a clínica ganhou os holofotes quando Keira Bell, uma mulher que foi submetida à redesignação sexual quando era menor de idade, processou a Tavistock na Justiça.
A pediatra Hilary Cass, que já presidiu o prestigioso Royal College of Paediatrics and Child Health, investigou os problemas da clínica e elaborou um relatório sugerindo que o local fosse fechado — o que foi acolhido pelo National Health System (NHS), o sistema de saúde do Reino Unido. A ideia é criar uma rede de centros de apoio locais que ofereça um tratamento “fundamentalmente diferente”.
Em seu relatório, Hilary Cass menciona problemas como a “falta de uma justificação clara por escrito para decisões tomadas em casos individuais” e o fato de que funcionários “se sentiam pressionados a adotar uma abordagem ‘afirmativa’ sem fazer questionamentos’”. Ela também menciona que “existe uma falta de consenso e de uma discussão aberta sobre a natureza da disforia de gênero e, portanto, sobre a resposta clínica apropriada.”
“Esses países estão fazendo revisão da literatura e vendo que o número de arrependimentos tem aumentado muito”, diz o médico Raphael Câmara, que foi secretário de Atenção Primária à Saúde na gestão Bolsonaro. “Nós não temos como saber a priori quem vai se arrepender ou não. Quanto mais cedo é dado o diagnóstico, mais casos de arrependimento existem”, ele acrescenta.
Quando o Conselho Federal de Medicina (CFM) discutiu o tema, Câmara defendeu que o tratamento hormonal cruzado (com hormônios do sexo oposto) só fosse autorizado a partir dos 18 anos de idade, e a cirurgia aos 21. Ele acabou derrotado. Os limites aprovados pelo CFM são de 16 e 18 anos, respectivamente.
Quebrando o silêncio
Os países europeus que têm repensado sua abordagem à disforia de gênero entre jovens não podem ser definidos como conservadores. O rótulo tampouco se aplica ao The New York Times, símbolo da mentalidade dita “progressista” nos Estados Unidos. Ainda assim, no começo do ano o periódico foi alvo de uma carta pública de ativistas LGBT e de colaboradores do próprio jornal. O motivo: o jornal estaria dando espaço a vozes transfóbicas que levantam questionamentos sobre a efetividade dos bloqueadores de puberdade – ainda que de forma tímida.
Um dos artigos criticados mostrava histórias de estudantes que adotaram uma nova identidade de gênero sem que os pais soubessem. Outra reportagem mostrava, de forma tímida, que as terapias irreversíveis aplicadas a adolescentes podem trazer sequelas. Uma terceira tinha o título inócuo de “Médicos discutem se adolescentes trans precisam de terapia antes dos hormônios.”
Foi o que bastou para que os ativistas da GLAAD, uma ONG poderosa que afirma defender os direitos LGBT, exigisse que o jornal parasse de "publicar reportagens enviesadas anti-trans". Mas, em um comunicado interno, o jornal não deu sinais de que vá mudar sua cobertura do tema.
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