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Guerra da água

Conversas para temporada de seca

Um vídeo educativo que circula pelas escolas de São José dos Pinhais, na região metropolitana de Curitiba, conta uma história que deve deixar a gurizada de boca seca. A narrativa, ambientada num sombrio ano de 2070, fala de cidadãos sujeitos a banho racionado e com direito a meio copo de água a cada 24 horas. Tamanha dureza faz os dias de hoje parecerem um romance açucarado. Como o objetivo do audiovisual é convocar a tropa ao racionamento, não seria de todo absurdo se, numa continuação, o filme brindasse a geração videogame com cenas de guerra – a Guerra da Água –, ambientada em plena região metropolitana. De um lado, a bela e árida Curitiba, que produz só 5,5% da água que consome. De outro, os municípios vizinhos, ricos tanto em áreas de manancial quanto em problemas sociais – um por todos e todos por um na defesa do seu tesouro.

Já não se faz guerras como antigamente, mas a hipótese faz lá o seu sentido. Curitibanos, são-joseenses e piraquarenses podem não protagonizar, em 2070, a Batalha do Guarituba ou da Vila Jurema, para citar dois pontos em que a água não anda passando muito bem na região metropolitana (RMC). Tudo indica, porém, que os vizinhos vão ter muito o que conversar antes que o futuro bata à sua porta. A população da RMC ultrapassou três milhões de habitantes, as divisas são quase uma abstração e o clima de metrópole chegou sem pedir licença. Os problemas, agora, são de gente grande, parecidos com os da Grande Belo Horizonte, Grande São Paulo ou Grande Rio. A divisão dos recursos hídricos é um deles.

Altíssimo comitê

Desde o início do ano, o recém-criado Comitê das Bacias do Alto Iguaçu e Alto Ribeira discute questões que não fariam sucesso em mesa de bar – como quem ajuda quem e quem paga pelo quê na divisão da água que circula pela região metropolitana. Estima-se que em um ano e meio vá se chegar a um acordo sobre quanto os grandes consumidores de água devem contribuir para melhorar a situação das bacias – fontes da riqueza insípida, inodora e incolor. Agricultores e o usuário do varejo estão fora da negociação. E é certo como a luz do dia que os municípios não vão aceitar receber uma banana por isso. Guerra é guerra.

Os que melhor se encaixam no perfil "doador universal" são Piraquara, São José dos Pinhais, Quatro Barras, Pinhais e Almirante Tamandaré (veja infográfico). Sem esses vizinhos, Curitiba morreria de sede. Com 1,7 milhão de habitantes, a capital, além de fria, é seca. Só supera em volume de águas as cidade de Araucária – responsável por 2,77% da Bacia do Passaúna – Campina Grande do Sul, Pinhais e Colombo, com 4,3%, 3,5% e 1,3%, respectivamente, da Bacia do Altíssimo Iguaçu. Tudo bem – uma mão lava a outra. Eis a questão.

A legislação que rege o uso de recursos hídricos não deixa dúvidas de que as águas pertencem à União e aos estados, frustrando o desejo dos municípios de receber pela água que conservam, à revelia de terem de contar moedas para tanto. O fato é que alguns inquilinos dos rios não se conformam com a obrigação de ter de manter o filtro cheio – para as visitas. "As normas foram colocadas goela abaixo das municipalidades. Fez-se política pública sim, mas sem pensar num mecanismo de compensação financeira adequada. É uma briga", considera o engenheiro ambiental Carlos Mello Garcias, especialista em ocupação urbana.

A situação dos municípios ricos em área de manancial se assemelha à daquela moça que namora um caixeiro-viajante e nunca sabe a que hora o pretendente vai chegar. Tem de estar sempre cheirosa e bonita se quiser manter as promessas do casamento. Ou seja, trabalha-se pesado para lidar com ocupação desordenada, deficiências de rede de esgoto e vigiar as indústrias. É isso ou ver adutoras explorarem noutra freguesia e o ICMS Ecológico bater asas.

Os donos dos mananciais na RMC vivem acotovelados entre os centésimos e ducentésimos Índices de Desenvolvimento Humano (IDH) do estado. Exceção, apenas São José dos Pinhais. Almirante Tamandaré, que entra com 10% da água da região e tem 85% de território em área de manancial, é o número 247.º do ranking do IDH. Piraquara, 184.º, situação agravada por ter 93% de sua área em nascentes e 7% em Mata Atlântica, o que significa não ter um metro quadrado para indústrias poluentes (embora mantenha uma, de pneus). Seu único amparo é o ICMS Ecológico, na casa dos R$ 8 milhões/ano, um quarto do PIB municipal. Seria motivo de festa, afinal, dos 82 municípios paranaenses com área de manancial, Piraquara é a que mais ganha. Mas há senões. "A lei é genérica não leva em conta que estamos privados de todos os outros recursos", polemiza o prefeito Gabriel Jorge Samaha, o Gabão.

Em São José, terra do aeroporto e das montadoras, as margens do Rio Pequeno, uma das principais fontes de água para a RMC, abrigam cerca de 60 mil pessoas e uma montadora de porte, a Renault, que se não polui, atrai. A cidade, 29.º IDH do estado, tem 85% do município em área de manancial, responde por mais de 14% da produção de água, recebe R$ 1 milhão/ano de ICMS Ecológico, poeira para uma área que cresce 5% ao ano. Tem mais água do que esgoto, com apenas 10% de tratamento. "A água precisa ter boa qualidade. Mas o crescimento não rima com esse processo. A coleta doméstica é deficitária", comenta José Tadeu Mota, secretário de Meio Ambiente de São José dos Pinhais.

A reportagem conferiu a ocupação em Vila Jurema, onde passa o Rio Pequeno e a BR-277 – a caminho do mar. O esgoto é jogado no rio in natura. Os moradores dos casebres não têm água encanada e se abastecem de um cano de ferro instalado pela prefeitura. Muitos sabem que a água do Pequeno abastece Curitiba e temem contato com o rio. "Essa água não é boa. É contaminada. A fossa vai direto. Olha ali...", diz o aposentado Luís Krachinski, 51 anos, quatro anos de Vila Jurema e coleta de água no cano duas vezes por dia.

O caso do bairro Guarituba, em Piraquara, é a pá de cal. A área que era conhecida pela excentricidade do Baile do Pato, de 15 anos para cá inchou, chegando a 46 mil habitantes, o equivalente à metade de todos os piraquarenses e à maioria dos pobres da região, espremidos numa área que soma 5% do município. Pelas imediações do bairro que nasce, cresce e padece à margem da cidade grande passa 63% da água da Bacia do Iguaçu, o bastante para abastecer dois milhões de consumidores. O Guarituba tem dote – nada menos do que 13 mananciais. Uma beleza – mas essa moça, não casa.

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