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O requerimento enviado pela CPI da Covid ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), que pede o banimento do presidente Jair Bolsonaro das redes sociais, é visto por especialistas em Direito e Ciência Política como inconstitucional. Além de configurar censura prévia, o que viola o direito de liberdade de expressão previsto no inciso IV do artigo 5º da Constituição Federal, o pedido está em desacordo com a Lei 9.296/1996, que trata da interceptação de comunicações, e com o Marco Civil da Internet.
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O requerimento, assinado pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), vice-presidente da CPI, também pede a quebra do sigilo telemático (cópia de todo o conteúdo armazenado nas plataformas, bem como envio das informações cadastrais e registros de conexão) de Bolsonaro desde abril de 2020 até agora.
Para Dário Júnior, doutor em Direito Processual, a Constituição Federal não ampara o conteúdo do pedido, uma vez que fere a liberdade de expressão, prevista no artigo 5º da norma constitucional. O jurista diz que o pedido avança sobre um direito fundamental do presidente e que o episódio em que Bolsonaro associou vacinas à contaminação por Aids é mais uma fala inábil do que uma transgressão que justifique silenciá-lo.
“Se uma rede social, que é privada, resolver banir um usuário igual o Twitter fez com Donald Trump, por exemplo, ficamos sem amparo. Agora, se o Judiciário vier a tomar uma atitude dessa, ele deverá fundamentar de tal forma que comprove que essa utilização das redes sociais está provocando um dano tão grande que precisa ser interditado, precisa ser retirado”, afirma. “Se nem mesmo o cidadão comum pode sofrer uma devassa irrestrita em suas comunicações privadas, não é aceitável violar o sigilo do presidente da República desta maneira a pretexto de preservar a população de falas que seus críticos consideram nocivas”, afirma o jurista.
Marcos Paulo Fernandes de Araújo, doutor em Fundamentos Teórico-Filosóficos do Direito, avalia que o banimento das redes sociais viola a liberdade de expressão e que a quebra do sigilo telemático de um chefe de Estado é uma medida temerária. “O presidente da República é figura pública, e suas transmissões audiovisuais em tempo real são públicas. Sem entrar no mérito das intenções de quem as determinou, não se afigura a menor necessidade de quebra de sigilos a fim de que ‘não se destruam provas’”, explica Araújo.
“Em seus próprios termos, a medida é desproporcional e contraditória: ou as falas do presidente são públicas e notórias e, portanto, passíveis de gerar o mencionado ‘caos’, ou é necessário evitar que se apaguem elementos probatórios. Mas aquilo que é público e notório não carece de comprovação. Uma coisa não pode ser e não ser evidente ao mesmo tempo”, ressalta.
Araújo pontua ainda que estranha a não menção do veículo de imprensa que publicou a matéria, a fim de que eventualmente fosse responsabilizado, caso o conteúdo se revelasse uma notícia falsa.
Emerson Grigollette, advogado especialista em Direito Digital, explica que o requerimento é ilegal, pois a quebra de sigilo telemático deve obedecer aos limites do Marco Civil da Internet e da Lei 9.296/1996. “No caso em questão, não foram preenchidos os requisitos da quebra nem apresentados os motivos que ensejam o pedido, conforme estipulado pelas normas citadas”, diz.
“O Marco Civil da Internet apenas autoriza a quebra para fins de identificação de autoria. No caso, não há que se apurar autoria alguma, pois já há identificação. O requerimento também extrapola os limites da lei determinando a apresentação de mais informações do que a norma permite, e das quais as empresas de tecnologia não estão obrigadas a fornecer”, complementa.
Para Taiguara Fernandes de Sousa, professor de Filosofia do Direito e de Ciência Política, o pedido da CPI representa uma tentativa de controle do debate pelo Estado, bem como o estabelecimento de cânones e assuntos permitidos ou proibidos.
“Quando o controle passa a ser institucional, estatal, abrimos o precedente perigoso de que sejam os agentes públicos a definir o que pode ser discutido ou não. Isso impediria até mesmo, por medo de alguma represália, a discussão científica de novas teses, o que é natural nesse tipo de debate”, afirma. “Esse tipo de atitude, na prática, pode ter a consequência de inibir o debate científico, por lançar contra uma opinião polêmica os mecanismos investigativos do Estado. Isso é contraproducente no curto e médio prazo”, diz Sousa.
Entenda o caso
A manifestação de Bolsonaro se deu na última quinta-feira (21) em transmissão em suas redes sociais. No vídeo, o presidente disse que um estudo no Reino Unido afirmava que 70% dos mortos pela Covid-19 estavam vacinados, mas não mostrou a fonte da informação. O presidente também citou um texto que citava que "os totalmente vacinados [contra a Covid-19] estão desenvolvendo a síndrome da imunodeficiência adquirida [Aids] muito mais rápido que o previsto". Facebook, Instagram e Youtube retiraram do ar o vídeo. O Youtube também impediu publicações de Jair Bolsonaro por sete dias.
Em entrevista a uma rádio nesta segunda-feira (25), Bolsonaro se defendeu dizendo que apenas citou a matéria de uma revista em sua transmissão e que, dois dias depois, a própria publicação afirmou que ele estava divulgando fake news.
A matéria, publicada na revista Exame em outubro de 2020, citava um estudo veiculado no periódico científico britânico The Lancet que apontava que algumas vacinas que usam um adenovírus específico no combate à Covid-19 poderiam aumentar o risco de que pacientes fossem infectados com HIV, o vírus da Aids. A reportagem destaca, entretanto, que não havia comprovação de que alguma vacina contra a Covid-19 reduzisse a imunidade a ponto de facilitar a infecção em caso de exposição ao vírus.
Nesta terça-feira (26), a CPI da Covid aprovou um requerimento que pede o banimento do presidente Jair Bolsonaro das redes sociais Facebook, Instagram, Twitter e YouTube por ter associado vacinas à Aids. O pedido será encaminhado ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
Vacinas e Aids
A associação das vacinas contra a Covid-19 com a Aids não é um assunto novo. Em outubro de 2020, o tema foi tratado pela revista Science, quando um grupo de pesquisadores desaconselhou o uso das vacinas em locais que apresentem epidemia de Aids, como a África do Sul. Segundo eles, o mecanismo de ação das vacinas nas células de organismos mais debilitados pode facilitar a infecção pela Aids. Outro artigo, publicado na The Lancet e já citado nesta reportagem, aborda o mesmo problema.
No mundo, há um caso de suspensão do uso da vacina por esse motivo: na Namíbia, o governo deixou de distribuir a russa Sputnik depois que a agência de regulação sanitária da África do Sul apontou preocupação semelhante. Os fabricantes do imunizante negam a relação e dizem que a Sputnik seria segura.
Após as declarações de Bolsonaro, o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/AIDS no Brasil (Unaids) divulgou nota de esclarecimento e aconselhou as pessoas com HIV a se vacinarem contra a Covid-19. “O UNAIDS vem a público para esclarecer que as vacinas aprovadas pela ANVISA e disponíveis no Sistema Único de Saúde (SUS) são a forma mais eficaz de controle da pandemia de COVID-19. Aconselhamos a todas as pessoas que vivem com HIV e tenham tomado a 2ª dose em 28 dias ou mais a buscar a dose de reforço, disponível em um posto de saúde mais próximo à sua residência”.
O Comitê de HIV/Aids da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) também divulgou nota e afirmou que “não se conhece nenhuma relação entre qualquer vacina contra a Covid-19 e o desenvolvimento de síndrome da imunodeficiência adquirida” e que “pessoas que vivem com HIV/Aids devem ser completamente vacinadas para Covid-19”.