Levantamento interno realizado pelo programa Corte Aberta, do Supremo Tribunal Federal (STF), revelou um crescimento da intervenção do tribunal em substituição aos outros poderes desde 2019, data que coincide com o início do governo do então presidente Jair Bolsonaro.
A tendência de avanço no protagonismo do STF, conforme o levantamento, tem se mantido inalterada até o atual momento do mandato de Lula.
O levantamento buscou identificar todas as decisões proferidas desde 5/10/1988 (data de promulgação da atual Constituição) “nos quais o Supremo Tribunal Federal tenha reconhecido situações de inconstitucionalidade por omissão”. O conceito significa que, na interpretação do tribunal, o Estado brasileiro seria constitucionalmente obrigado a atuar em determinado tema e deixou de atuar, tornando necessária a intervenção do STF.
Os alvos deste tipo de decisão são tipicamente o Executivo e o Legislativo; conforme o levantamento, o Judiciário foi alvo em apenas 4% dos casos.
Decisões fundadas em omissão inconstitucional representam apenas uma pequena fração das cerca de 90 mil decisões que o STF profere por ano. No entanto, têm participação desproporcional entre as decisões de maior atenção do público e, dada a sua natureza, servem de termômetro para o protagonismo do tribunal na política.
Aumento no governo Bolsonaro
Das 133 declarações de omissão inconstitucional proferidas pelo STF nos mais de trinta anos de vigência da Constituição, conforme o levantamento, quase metade (60) ocorreu durante o governo Bolsonaro (2019-2022).
Até 2019, nunca tinha sido registrado ano com mais de 8 decisões do gênero; já no governo Bolsonaro, todos os quatro anos de mandato tiveram número superior a este recorde: 11, 18, 13 e 18.
Com o início do governo Lula, o padrão de intervenção aumentada do STF, até o momento, tem se mantido, tendo sido registradas 11 decisões do gênero ao longo de 2023, mesmo número verificado para o primeiro ano de mandato de Bolsonaro.
Pandemia de Covid-19
A emergência sanitária da pandemia de Covid-19 é por vezes citada como causa da tendência a uma intervenção excepcional do STF. O ministro Gilmar Mendes, por exemplo, em discurso recente, mencionou que o tribunal “enfrentou o negacionismo em relação à pandemia”, em referência indireta ao governo Bolsonaro.
O STF de fato declarou inação inconstitucional do governo federal em medidas sanitárias de enfrentamento à Covid-19. Um exemplo foi a Ação Cível Originária 3.473, na qual ordenou, em liminar, a provisão de leitos de UTI.
No entanto, só houve 9 decisões do gênero entre as 60 proferidas pelo STF durante o governo Bolsonaro, conforme os dados do levantamento. No total, a pandemia foi citada de uma forma ou de outra nas ementas de apenas 16 das 71 decisões de omissão inconstitucional proferidas desde 2019. Um exemplo foi a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 635, na qual foram proibidas, em 2020, operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia.
Assim, a Covid-19 é insuficiente para explicar o aumento das declarações de omissão inconstitucional pelo STF, que batem recordes a partir de 2019 mesmo quando são excluídas da amostra as decisões que mencionam a pandemia de Covid-19.
Mudanças no perfil das decisões
Além do aumento quantitativo, as decisões declaratórias de omissão inconstitucional também mudaram em natureza desde a promulgação da Constituição.
Nos anos 1990 e 2000, conforme os dados do programa Corte Aberta, os temas mais comuns de intervenção do STF incluíam a organização do Estado, as regras sobre servidores públicos e os direitos sociais, com destaque para os direitos previdenciários.
O que estes temas têm em comum é possuírem regras detalhadas na Constituição de 1988, inclusive em dispositivos que expressamente ordenavam ao Congresso a elaboração futura de uma lei esclarecendo os pontos omissos. Esta situação torna mais natural que o STF constate que o Legislativo ou o Executivo se omitiram em cumprir um comando constitucional.
Em contraste, desde 2013, outros assuntos, disciplinados de forma mais aberta na Constituição ou não mencionados expressamente no texto, vêm se juntando aos anteriores e ganhando cada vez mais destaque nas declarações de omissão inconstitucional. Em particular, destacam-se os direitos dos acusados ou dos presidiários e causas ligadas à pauta de minorias (mulheres, negros, indígenas, quilombolas e grupos da sigla LGBT).
As decisões judiciais fundamentadas em princípios constitucionais abstratos, invocados para contrariar a letra da lei infraconstitucional ou para inovar na ordem jurídica, correspondem a uma das definições existentes para o chamado ativismo judicial.
Assim, os dados do programa Corte Aberta tendem a corroborar a afirmação frequente, tanto entre leigos quanto entre estudiosos, de aumento do ativismo do STF nas últimas décadas.
Criminalização da homofobia e da transfobia
Um exemplo se deu em 2019, quando o STF declarou que o Congresso violava a Constituição ao não editar lei criminalizando a homofobia e a transfobia, embora os dois termos não constem, enquanto tais, no texto constitucional.
Nos votos vencedores, foi feita referência indireta ao presidente Bolsonaro, que estava, então, em seu quinto mês de mandato. O ministro Luiz Fux argumentou, em seu voto no MI 4.733, que, ainda que o Congresso aprovasse lei sobre a matéria – o que, conforme ressaltou, não era certo que o Congresso desejasse fazer –, existia a possibilidade de que o então presidente exercesse o direito de veto sobre a proposta. Já se a criminalização fosse feita pela via judicial, inexistia essa possibilidade.
No mandato parlamentar que antecedeu a presidência, Bolsonaro tinha se notabilizado por se manifestar contrariamente às pautas LGBT no Congresso e no governo federal.
Postura mais intervencionista do STF
Em julgados sobre um mesmo tema, é possível ver mais claramente a mudança de postura do STF em direção a um maior ativismo.
Um exemplo famoso é o do direito de greve dos servidores públicos. A Constituição foi promulgada com a disposição de que “o direito de greve será exercido nos termos e nos limites definidos em lei” (art. 37, VII), antes da qual este tipo de greve não seria possível.
Diante da demora do Congresso em editar a lei exigida, o STF foi procurado para declarar a existência de omissão inconstitucional; primeiro em 1994 e, de novo, em 2002. Nas duas ocasiões, deu razão aos autores do pedido e declarou a omissão inconstitucional, mas alegou a necessidade de autocontenção judicial, em respeito à separação dos poderes. Por isso, limitou-se a “reconhecer” a demora ilícita do Congresso e “comunicar-lhe a decisão, a fim de que tome as providências necessárias”.
No ano de 2007, passados quase 20 anos da promulgação da Constituição sem que a lei tivesse sido editada, o STF foi provocado novamente, mas desta vez deu resposta diferente e substituiu o Congresso na tarefa, ditando as regras a serem aplicadas.
Desde então, como os dados revelam, só têm crescido os casos de declaração de omissão inconstitucional com assunção pontual das funções de outro poder.
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