Aproximadamente duas semanas antes das eleições norte-americanas, Clifton Eutsey, um rapaz de 18 anos que mora na cidade de Buffalo, no estado de Nova York, informou à polícia que seu carro, uma BMW, havia sido vandalizado por apoiadores de Donald Trump. Ao chegar ao local, a polícia encontrou um carro apedrejado e pichado com mensagens racistas, incluindo símbolos nazistas, ofensas ao movimento Black Lives Matter e ataques homofóbicos, além de frases de apoio ao republicano, como “Vote em Trump” e “Trump para presidente”.
O caso teve bastante repercussão na imprensa local e nas redes sociais. Dias depois, porém, a investigação policial concluiu que o próprio Eutsey havia vandalizado seu carro por motivações políticas. O rapaz foi acusado de falsa comunicação de incidente, fraude de seguro e falsificação de registros. Se condenado por todas as acusações, pode pegar até sete anos de prisão.
Episódios desse tipo, envolvendo a criação de boatos ou farsas por motivações ideológicas não são raros. Um dos episódios mais icônicos, que também ocorreu nos Estados Unidos, está relacionado ao ator norte-americano Jussie Smollett. Em janeiro de 2019, o site de notícias TMZ publicou uma matéria informando que Smollett, que é homossexual e negro, estava hospitalizado após ter sido violentamente atacado por dois homens brancos racistas que teriam quebrado uma de suas costelas, amarrado uma corda em seu pescoço e jogado alvejante em seu corpo. Ao saírem, os dois teriam gritado “Este é o país do MAGA”, fazendo referência ao slogan de campanha de Donald Trump – Make America Great Again.
Poucas horas após a publicação da notícia, políticos e celebridades influentes do país passaram a comentar em canais de TV e em suas redes sociais que os Estados Unidos eram um lugar bastante perigoso para as minorias. Na época, Kamala Harris – senadora e vice-presidente na chapa de Joe Biden –, tuitou que o caso se tratava de um “linchamento dos dias modernos”. O senador Cory Booker endossou o coro e usou o incidente para pressionar por mais legislações contra crimes de ódio.
A congressista Alexandria Ocasio-Cortez criticou em suas redes sociais veículos que estavam tratando o caso como um "possível" crime de ódio. Já Rashida Tlaib, outra congressista, publicou que “a direita está matando e prejudicando nosso povo”.
Entretanto, algumas semanas depois, a polícia de Chicago concluiu que o ator – que é um ativista progressista – havia contratado dois nigerianos para encenarem o ataque e que seu objetivo era “ganhar a atenção da mídia”. De acordo com informações da rede americana ABC, Smollett foi indiciado por seis acusações relacionadas a relatos falsos à polícia. O caso ainda está em andamento na justiça norte-americana, e o ator enfrenta outro processo, no qual a polícia de Chicago pede que ele pague pelas horas de trabalho dos oficiais que atuaram no caso.
A incidência desse tipo de falsa narrativa cresceu tanto nos últimos anos no país norte-americano que o pesquisador e professor de Ciência Política na Kentucky State University, Wilfred Reilly, passou a estudar mais a fundo sobre o tema. O pesquisador analisou 346 supostos casos de crimes de ódio e concluiu que menos de um terço se tratava de casos genuínos.
Algumas das ocorrências narradas por Reilly em um livro que sucedeu a pesquisa citam uma mulher branca do estado de Oregon que desfigurou o próprio rosto com ácido e afirmou que um homem negro a havia atacado (mais tarde, ela admitiu ter inventado a história); um pastor homossexual no Texas que acusou uma loja de vender para ele um bolo com uma calúnia escrita em glacê (a loja produziu evidências em vídeo de que o homem estava mentindo); e um popular bar gay no subúrbio de Chicago cujo dono passou a citar a homofobia como o motivo da destruição do local por um incêndio em 2012 – após uma investigação policial apontar o contrário, o dono do bar se declarou culpado de incêndio criminoso e fraude de seguro.
Consequências da divulgação de falsas narrativas de crimes de ódio
Apesar de a criação de boatos ou farsas, que ganham espaço na internet rapidamente graças ao compartilhamento nas redes sociais – termo conhecido como “hoax” –, não ser uma novidade, seu uso para temas sensíveis como denúncias de crimes de ódio podem causar problemas diversos a uma coletividade, aponta Achiles Batista Ferreira Junior, doutor em tecnologia e sociedade pela Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). “Essas alegações falsas prejudicam o enfrentamento aos problemas reais relacionados aos crimes de ódio. A partir do momento em que as pessoas descobrem que um determinado caso se trata de uma "fake news", o assunto cai em descrédito e uma denúncia verdadeira daqui a algum tempo não vai mais chamar a atenção”, explica.
Ele também aponta o fator político ao qual alguns desses casos estão atrelados. “Antes do advento da tecnologia, existia uma estratégia que era soltar notícias bombásticas na última semana antecedendo ao dia da eleição para não dar direito de resposta e prejudicar um rival político. Hoje, com a tecnologia, isso ficou muito mais fácil”, observa.
O aspecto político-ideológico que envolve os hoax relacionados a crimes de ódio também é apontado pelo sociólogo Lucas Rodrigues Azambuja, professor do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec). “O termo ‘hoax’ é um rótulo novo para algo que já existe há muito tempo, que é a desinformação. Quando ligados a fins políticos, essa estratégia de dissimular, desinformar ou mentir tem como objetivo manipular as pessoas numa certa direção, aproveitando que casos desse tipo podem alcançar milhões de pessoas pelas redes sociais”, afirma.
“Algumas pessoas se reorientam quando um caso falso é desmascarado, mas outras buscam só o que vai confirmar o que elas gostariam que fosse”, destaca Azambuja.
Ferreira Junior ressalta que casos desse tipo, assim como outros tipos de fake news, podem alcançar muitas pessoas de um momento para o outro, mas a verdade sobre o caso nem sempre chega a todas as pessoas expostas à falsa narrativa.
Por outro lado, Azambuja explica que grupos orientados ideologicamente comumente usam a criação de hoax de crimes de ódio como mecanismo para fomentar uma ruptura na sociedade.
“Uma revolução se faz por um processo de ruptura, de total polarização. Isso aumenta os ressentimentos e orienta politicamente problemas que infelizmente existem. Em vez de buscar a solução por meio do diálogo, esses grupos exageram em fatos e passam a atribuir causas ideológicas para estimular essa polarização”, afirma Azambuja.
“Hoje se você consegue tachar uma pessoa ou um grupo como racista, por exemplo, a imagem dessa pessoa acaba sendo queimada. E esse componente normalmente é usado nesses falsos casos de crimes de ódio”, explica.
O que diz a legislação brasileira quanto aos crimes de ódio e às falsas narrativas
No Brasil, “crime de ódio” não se trata de um crime em específico, mas é um conceito que abarca alguns delitos contra grupos específicos, normalmente por questão de raça, orientação sexual ou religião. De acordo com Douglas Lima Goulart, especialista em Direito Penal e sócio do escritório Lima Goulart e Lagonegro Advocacia Criminal, algumas das transgressões que comumente são associadas a crimes de ódio são: racismo (previsto na lei 7.716/89); injúria racial (artigo 140, parágrafo 3º do Código Penal); genocídio (previsto na Lei 2.889/56), que consiste em atos de violência por motivações étnicas, raciais ou religiosas; ultraje a culto e impedimento ou perturbação de ato a ele relativo (artigo 208 do Código Penal); crimes contra a honra (calúnia, difamação e injúria – artigos 138, 139 e 140, respectivamente, do Código Penal) quando relacionadas a fatores discriminatórios; e o artigo 41 da Lei das Contravenções Penais – “Provocar alarme, anunciando desastre ou perigo inexistente, ou praticar qualquer ato capaz de produzir pânico ou tumulto”.
“Quando se fala em crime de ódio, a motivação para a conduta não está relacionada a uma pessoa específica, mas ao grupo ao qual a pessoa pertence. Em uma injúria racial, por exemplo, há uma vítima que é alvo, mas a motivação por trás está relacionada a um sentimento contrário à existência do outro como grupo”, afirma Goulart, destacando que ofensas homofóbicas foram equiparadas ao crime de racismo por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão (ADO) 26, julgada pelo STF em 2019.
Por outro lado, há tipificações às quais estão sujeitos os autores de narrativas falsas de crimes de ódio. “Se alguém cria um caso falso relacionado a uma pessoa, por exemplo, isso pode ser enquadrado como crime de injúria. Se a falsa narrativa tem cunho racial, pode ser um crime de racismo. São várias as possibilidades quando se trata de fake news, que vão variar conforme o contexto”, explica o advogado.
“Hipóteses criminais comumente ligadas à difusão de fake news são a denunciação caluniosa e a comunicação falsa de crime (artigos 339 e 340 do Código Penal)”, aponta. “Na comunicação falsa de crime, a mensagem inverídica precisaria estar vinculada a uma hipótese criminal com capacidade de provocar a ação de autoridade, como por exemplo quando o indivíduo promove a locomoção de viaturas ao propagar mensagem sobre um falso homicídio. Já na denunciação caluniosa, a acusação remete a uma pessoa específica e a mensagem serve efetivamente para dar início a uma investigação formal”.
Uma denúncia inverídica de crime de ódio que ganhou grandes proporções e teve como desfecho o indiciamento da autora por comunicação falsa de crime ocorreu em 2018. Uma jovem registrou um boletim de ocorrência em Porto Alegre e afirmou que, por estar com um adesivo com o símbolo LGBT, teria sido agredida com socos por um grupo, o qual teria feito uma cruz suástica, símbolo do nazismo, em suas costelas com um canivete. Várias figuras políticas replicaram a imagem que a jovem publicou em suas redes sociais. A investigação policial, contudo, concluiu que o crime não existiu. O laudo da Polícia Civil apontou que a mulher possivelmente teria se automutilado. Apesar de ter registrado a ocorrência e prestado depoimento, a jovem decidiu não representar criminalmente e a investigação foi suspensa.
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