“Pô, a senhora bem que podia explicar o que é pedalada fiscal”, reclamou um aluno à historiadora Adriane Sobanski, professora do Colégio Estadual Senador Manoel de Alencar Guimarães, o Cesmag, no Bigorrilho. O pedido foi atendido, assim como um outro – feito debaixo de sussurros. “Professora, quem é esse tal de Che Guevara?”, quis saber uma estudante que chamou um colega para participar da prosa, ambos como se fossem carbonários com medo de tortura.
É simples encontrar na internet uma explicação para “pedalada fiscal”. Do mesmo modo, existem na rede borbotões de minibiografias do Che, para consumo instantâneo, incolor e indolor. Mas dessa vez, a wiki não foi o limite. É provável que os alunos de Adriane procuravam uma voz capaz de dar algum sentido à briga de Tom e Jerry em que o país se meteu. Queriam um narrador, encontraram um a postos.
Não há registros oficiais sobre o impacto da crise nas salas de aula. Apenas impressões. Mas caso o que tem ocorrido no Cesmag seja uma tendência – valerá a pena essa era de desaforos em série e boatos tão rasteiros que fazem das lavadeiras investigadores do Panamá Papers. A arena política que transformou Brasília num febeapá (festival de besteiras que assola o país) e a crise econômica que gerou 10 milhões de desempregados podem estar servindo para tirar os alunos da pasmaceira – tornando-os perguntadores, e esse é o princípio da boa educação.
Caso a provação bíblica pela qual passam o Brasil tenha de fato algum efeito positivo sobre os alunos, tende a ter efeito semelhante sobre os professores. Há controvérsias, é claro. Sobram relatos sobre mestres que se voluntariaram à Lei da Mordaça, antes mesmo de sua obrigatoriedade, tamanha a recusa em discorrer sobre o novíssimo vocabulário nacional, pipocado de coxinhas e petralhas e pixulecos. Há medo em cadeia da patrulha ideológica, da vigilância religiosa e do desaforo dado por aquele que pode ser o pior inimigo – aquele que dá aula na sala ao lado. Os cafezinhos na hora de recreio, diz-se, se tornaram uma prévia do campo de guerra.
Parte da resistência em deixar a realidade entrar no currículo tem justificativa. É faca no peito. Não estava no programa de aprendizagem de ninguém, por exemplo, a 28.ª fase da Operação Lava Jato. Nem fazer das tripas coração até encontrar uma explicação convincente para o festival de recados amorosos, bravatas municipais e atos de fé dos deputados na hora de votar pelo impeachment. Enquanto a polarização vai tomando conta da sala de aula, ficam à espera a Guerra do Peloponeso, a geopolítica, a análise sintática e até mesmo a obscura Fórmula de Bhaskara.
Há duas semanas, Adriane Sobanski encontrou a atriz curitibana Letícia Sabatella, em uma manifestação na “Santos Andrade”. Engataram um papo, que acabou numa pergunta incômoda: “Como é que vocês vão ensinar a partir de agora?”. A professora devolve: “Meus amigos, me ajudem: como é que se ensina história?”, brinca, diante dos impasses que a experiência de 21 anos de magistério não se mostram capazes de dizimar. Enquanto recolhe a opinião dos colegas, forma a sua própria. “É hora de falar mais da História do Brasil. Todo professor tem de ser um pesquisador e estamos no momento de investigar como chegamos até aqui. Convenhamos, a ditadura de 64 virou um fato do passado, perdeu o impacto no ensino. A gente mostra um campo de concentração em A lista de Schindler e alguns alunos riem”.
“A escola vai ter de enfrentar a crise. As crianças perguntam em quem vamos votar. Não podemos nos furtar.
Se Adriane sofre pressão por suas escolhas? Sim. “É surreal, parece que voltamos ao macarthismo. O que ela e outros dizem é que as conhecidas dificuldades sofridas pelos professores só fizeram aumentar do ano passado para cá. Alguns desanimam. Para esses, ela recomenda que mostrem estar baseados em bons autores, de modo a não serem acusados de aliciadores ideológicos dos alunos. “Essa mudança toda dá trabalho”, avisa a professora – que faz pesquisa de doutorado sobre o modus operandi dos historiadores que atuam na escola pública. Matéria prima não lhe falta.