Assim como a dona de casa Jupira Silvana da Cruz Rodrigues — que teve sua história contada pela Gazeta do Povo na última semana —, a cuidadora de idosos e agente comunitária Nilma Lacerda Alves também foi condenada a 14 anos de pena sem nenhuma prova de que tenha danificado patrimônio público, participado de associação criminosa armada ou tentado abolir violentamente o Estado Democrático de Direito, como entende o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Alexandre de Moraes. O ministro André Mendonça pediu destaque para seu caso, e um novo julgamento será marcado, em breve.
Em seu relato à Gazeta do Povo, ela conta que foi presa enquanto orava no hall de entrada do Palácio do Planalto e que entrou no local para se proteger das bombas de gás lacrimogênio, spray de pimenta e dos tiros com balas de borracha. “Tentei sair três vezes, mas fomos encurralados com bombas”.
Moradora do município de Barreiras (BA), Nilma é funcionária pública concursada há 20 anos, vendia semijoias para aumentar a renda familiar e cuidava de uma idosa aos finais de semana. Com isso, não poderia permanecer fora de casa por muito tempo e chegou somente em 8 de janeiro ao acampamento, em Brasília.
Lá, ela relata que saiu em marcha com os demais e passou pela revista com sua bolsa carregada com quatro barrinhas de cereais, maquiagens e um panetone. “E eu estava com a minha bandeira sem mastro”, pontua a mulher, que seguiu os manifestantes em direção à Praça dos Três Poderes, pois não conhecia o lugar.
“Então, quando começaram a jogar bombas contra nós, só corri para o primeiro abrigo que vi”, conta a baiana, pontuando que ficou todo o tempo perto da entrada, fugindo dos tiros e tentando evitar danos ao patrimônio público. “Eu ouvia o barulho de coisas quebrando e gritava ‘não quebra, não quebra’, porque não era para isso que tínhamos ido lá.”
Segundo ela, os vidros do palácio ainda estavam intactos, mas começaram a ser danificados pelas balas de borracha. “Teve até um rapaz que colocou a bandeira do Brasil na frente das vidraças, pedindo que os policiais parassem de atirar”, conta. “A gente não queria nada destruído.”
A agente comunitária também relata que tentou desempilhar cadeiras amontoadas na porta do palácio e que até desmotivou um homem que queria jogar caixas para fora do Planalto. “Eu segurei ele e falei para não jogar nada. Aí o rapaz pegou tudo de volta.”
No entanto, as balas de borracha e o cenário de guerra continuavam e, como não conseguia sair do local, Nilma conta que se ajoelhou de olhos fechados e permaneceu em oração até ser presa.
Sete meses de cárcere e muitos traumas
Ao todo, ela permaneceu sete meses na Penitenciária Feminina do Distrito Federal, conhecida como Colmeia, onde ficou longe da única filha e da neta, uma bebê de seis meses. “Quando saí de casa, minha netinha começava a engatinhar e era muito grudada comigo, mas quando voltei, ela não me reconhecia”, lamenta, ao afirmar que essa foi apenas uma das consequências do tempo de cárcere.
“Hoje eu não consigo mais ficar perto das pessoas, não consigo conversar e nem trabalhar porque sinto medo e não encontro as palavras, estou com um bloqueio psicológico devido a tudo que vivi”, relatou à Gazeta de Povo, ao explicar que sua família se uniu para pagar sessões de psicologia e psiquiatria, e que ela já solicitou férias vencidas e licença-prêmio para usar durante o tratamento. “Já levei os laudos médicos, mas a prefeitura de Barreiras (BA) não está liberando”, lamenta.
De acordo com sua filha Bruna Lacerda, a mãe não está em condições de retornar ao trabalho devido à condição psicológica que tem apresentado desde que recebeu a liberdade provisória, com tornozeleira eletrônica.
“Ela caminha sempre com a cabeça baixa e as mãos para trás, como se ainda estivesse algemada, e tem pavor de ficar sozinha com outra pessoa, até com o médico em uma consulta”, relatou a jovem enfermeira durante uma live transmitida pelo canal Dr. Marcelo Suave, no YouTube.
“Às vezes, minha mãe está comendo em casa e começa a chorar porque lembra do alimento estragado que tinha que comer na prisão para não morrer de fome”, continuou, ao citar ainda que, quando está em locais com outras pessoas, ela se encosta na parede para não atrapalhar a passagem de ninguém. “Como uma pessoa de bem, que não cometeu crime nenhum, está passando por isso?”, questiona.
“Nunca passei tanta humilhação”, relata a agente comunitária
Em entrevista à Gazeta do Povo, Nilma conta, muito emotiva e tentando encontrar as palavras, algumas cenas que viveu na prisão. “O pior era acordar todo dia lá dentro sem ter feito nada errado, uma injustiça que mexeu muito com meu psicológico, pois nunca passei tanta humilhação”, citou.
De acordo com ela, 164 mulheres presas no 8 janeiro ficaram semanas em uma ala com apenas um vaso sanitário disponível e uma única pia usada para lavar pratos, copos, realizar higiene pessoal e beber água. “E até fazer fila era motivo de medo”, conta.
Em uma das vezes que estava na fila de verificação com as presas, por exemplo, ela conta que cruzou as mãos para frente, “sem perceber, devido ao cansaço e à ansiedade”, e ouviu a agente penitenciária afirmar que, “na próxima vez que as mãos não estivessem para trás, teria castigo”. Nilma não deu detalhes sobre as punições.
A agente comunitária também relatou que passou frio na penitenciária, principalmente durante as madrugadas, quando precisava lavar e colocar para secar a única muda de roupa que tinha: uma camiseta e um shorts. “Sem contar as inúmeras noites sem conseguir dormir e os dias sem comer”, afirma a mulher. “Nunca pensei que passaria tanta fome”.
Segundo Nilma, as detentas recebiam duas marmitas diariamente, além de dois pãezinhos “do tipo bisnaguinha” e um pedaço de fruta de cerca de três centímetros. “E, muitas vezes, a comida vinha azeda, com cabelos, cacos de vidro, pedras e até bichos”, relata a mulher, que acostumou a encontrar lagartos de três centímetros cozidos junto com legumes. “Teve um dia também que as marmitas vieram cheias de larvas vivas. Como comer aquilo?”.
A baiana contou ainda que muitas pessoas passavam mal e demoravam horas e até dias para receber atendimento. “Eu mesma caí no banheiro e rasguei minha mão por causa dos azulejos quebrados, mas nem pedi ajuda porque não adiantava”.
Nilma escreveu um diário em pedaços de papel higiênico
Na tentativa de lidar com a situação e lembrar detalhes do que estava vivendo no cárcere, Nilma conseguiu uma caneta e escreveu um diário em rolos de papel higiênico. Neles, ela cita datas em que suas colegas passaram mal, frases impactantes que ouviu na prisão, as situações de intimidação e também o quanto clamava a Deus para sair de lá. “Senhor, estamos esgotadas. Senhor, misericórdia”, escreveu em uma das páginas.
Já em outra folha, com a data de 11 de maio, ela escreve sobre o reencontro tão aguardado com sua filha, depois de quatro meses sem contato. “Que emoção, que coisa boa, Senhor”, escreveu nas anotações. “Queria tanto voltar para casa com ela”, continuou com letras miúdas, necessárias para economizar o papel. “Só nos últimos meses começamos a ganhar uma folha sulfite para escrever, e eu a cortava em pedaços menores.”
Ela aguarda novo julgamento e clama por justiça
Nilma conseguiu a liberdade provisória com uso de tornozeleira eletrônica após sete meses de cárcere. Seu julgamento online no STF começou com o voto de Alexandre de Moraes, que a condenou a 14 anos de prisão, mas foi interrompido graças a um pedido do ministro André Mendonça para que a avaliação do caso de Nilma ocorra de forma presencial.
De acordo com o advogado de defesa Hélio Junior, Nilma “nunca sofreu qualquer processo administrativo ou responsabilização disciplinar, e nem respondeu processo criminal”. “Ela é uma pessoa de bem que foi presa no Palácio do Planalto quando ainda gritava para os vândalos não quebrarem o patrimônio público”, afirma o advogado, ao explicar que ela e os demais presos do 8/1 têm sido acusados de crimes multitudinários, “que colocam a culpa de todos os atos em todas as pessoas que estavam lá”.
Por isso, Nilma pede que as condutas sejam individualizadas. “Já paguei muito, por coisas que não fiz. Então, peço que me julguem pelos meus atos e pelo que eu tinha em minha posse”, afirma. “Eu quero acompanhar o crescimento da minha neta, sem perder isso e ser presa por algo que não cometi”, finaliza.
A Gazeta do Povo entrou em contato com o Ministério dos Direitos Humanos (MDHC) a respeito de todas as situações descritas pela entrevistada e aguarda retorno. O jornal também procurou a prefeitura de Barreiras para verificar se o pedido de férias e licença-prêmio serão aceitos. O espaço segue aberto para as respostas.
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