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O Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) deverá julgar nesta quarta-feira (7) se os decretos que vetam atividades religiosas coletivas são inconstitucionais. No sábado (3), véspera da Páscoa, o ministro Kassio Nunes Marques autorizou por liminar a realização de cultos, missas e demais celebrações religiosas em todo o país. Dois dias depois, em outra ação, Gilmar Mendes negou pedidos do Conselho Nacional de Pastores do Brasil e do Partido Social Democrático (PSD) para derrubar o decreto do governo de São Paulo que vetou atividades religiosas coletivas presenciais.
Com as decisões contraditórias, caberá ao Plenário do Supremo pacificar a questão. A decisão de Nunes Marques foi tomada no âmbito da ADPF 701, ajuizada pela Associação Nacional de Juristas Evangélicos (Anajure). Já a determinação de Gilmar Mendes faz parte da tramitação da ADPF 811, movida pelo PSD. Por enquanto, em São Paulo, prevalece a decisão de Gilmar Mendes. No resto do Brasil, ainda vale a decisão de Nunes Marques.
O julgamento do STF não será capaz de impedir celebrações religiosas nos lugares onde os decretos já liberaram essas atividades. O jurista Acácio Miranda, especialista em Direito Constitucional, esclarece que a Corte analisará a legalidade das restrições que são impostas pelos decretos, mas não poderá definir uma restrição para todo o território nacional à revelia dessas normas. “O Supremo julga a constitucionalidade das normativas. Não está dizendo se aquilo é correto ou não. Está analisando o teor da norma”, explica.
Exigência de cuidados é legítima, mas supressão de cultos é inconstitucional, dizem juristas
Juristas consultados pela Gazeta do Povo dizem que a exigência de medidas sanitárias para diminuir as chances de disseminação do vírus durante as celebrações religiosas é legítima, mas que a proibição dos cultos e missas por parte do Estado é inconstitucional.
“A supressão total de culto ou assembleia religiosa é absolutamente impossível na ordem constitucional brasileira. Outra coisa é fazer algumas restrições próprias de uma emergência de saúde pública, como certas normas de distanciamento, de higienização e de lotação”, salienta o advogado Gustavo França, mestre em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
A decisão de Nunes Marques, segundo França, esclareceu bem a falta de fundamento constitucional para a supressão da liberdade de culto em estado de emergência. “De fato, se você consulta os artigos da Constituição que falam sobre o estado de sítio e sobre o estado de defesa, nenhum dos dois permite a supressão de cultos religiosos”, destaca.
O jurista Thiago Vieira, presidente do Instituto Brasileiro de Direito e Religião (IBDR), reconhece a necessidade de “mitigar a liberdade religiosa”, como já tem ocorrido, mas não a de vedá-la totalmente. O IBDR pretende entrar como amicus curiae no julgamento no STF desta quarta.
Para Vieira, suprimir a possibilidade do culto é mexer no núcleo das religiões. “A liberdade religiosa tem um núcleo essencial, que é o culto. É por meio do culto que a expressão máxima da fé das pessoas acontece. Mesmo que um pastor diga que pode fazer um culto online, se perguntarem para ele o que ele prefere, a resposta é óbvia. O culto continua sendo essencial”, afirma.
O jurista André Gonçalves Fernandes, pós-doutor em Filosofia e História da Educação pela Unicamp, também vê a decisão como inconstitucional. Ele prevê, porém, que o Plenário do STF vai respaldar a visão de Gilmar Mendes, e não a de Nunes Marques. “No balanceamento entre direitos que estão em choque – à saúde pública e à liberdade religiosa –, ao que parece, deve prevalecer a decisão de vedar a liberdade de exercício de culto coletivo nas igrejas.”
Sugestão de “rezar em casa” de Marco Aurélio revela ignorância sobre religião, dizem juristas
Em entrevista ao site O Antagonista sobre a decisão de Nunes Marques, o ministro Marco Aurélio Mello afirmou: “Nós podemos muito bem rezar e observar a nossa religião no recinto do lar”. Para os juristas consultados pela Gazeta do Povo, a declaração revela ignorância sobre as religiões.
Vieira diz que é necessário que os juízes entendam melhor como as igrejas são. “Um juiz que é ateu ou agnóstico, que não entende como a religião funciona, fala que o fiel pode rezar em casa. A pessoa que diz isso não entende como o Cristianismo funciona, nem as religiões de matriz africana e tantas outras. Não sabe o que está falando. Acho que tinha que dar um curso para os ministros do STF, para o Judiciário em geral, de como funciona a religião. Essa conversa é importante. Os magistrados precisam entender a religiosidade das pessoas”, afirma.
Fernandes diz que tanto essa declaração de Marco Aurélio como os próprios decretos sanitários proibindo as celebrações religiosas evidenciam uma tendência da sociedade contemporânea de tratar a religião como um fenômeno voltado à autossatisfação e à chamada “descoberta de si mesmo”.
“A religião, hoje, é guiada por uma espécie de ética da autenticidade. Foca muito mais no indivíduo e na sua vivência a fim de suscitar uma espiritualidade privatizada. Há uma ênfase, hoje, na cultura do self, egoica, em que a busca espiritual é vista como uma espécie de autossatisfação transcendente. Nessa visão de espiritualidade, de ‘se descobrir a si mesmo’, digamos assim, é razoável que alguém entenda que o culto coletivo para o exercício de qualquer religião seja algo dispensável – porque se parte dessa sensibilidade religiosa privatizada. Há um desacoplamento entre a crença e a prática coletiva do culto. As pessoas passam a acreditar sem ter necessidade de pertencer a algo. É uma visão que está muito nas entrelinhas desses decretos estaduais”, afirma.
Para Fernandes, "não se pode compreender as estruturas íntimas de qualquer sociedade, qualquer época, se não se conhece bem a sua religião”. “A religião é chave para a história. Você não consegue entender as conquistas culturais dessa civilização se não compreende todas as crenças religiosas que estão por trás de todas as conquistas culturais. As primeiras elaborações criativas de uma cultura sempre se devem a uma inspiração de cunho religioso e sempre estão voltadas para um fim religioso. Isso é notório na história.”
Por isso, diante da questão sobre a religião ser ou não um serviço essencial, Fernandes responde que ela é mais do que um serviço essencial. “Ela faz parte do ser do homem. A religião é o local onde se decide a existência humana em sua radicalidade. É o âmbito onde o ser humano recebe a resposta para o sentido global de sua vida e da existência das coisas”, diz.
Para Vieira, uma boa solução para o problema da falta de conhecimento sobre as religiões seria um diálogo maior entre os membros do Estado e os religiosos. “A conversa entre o Estado e a igreja é constitucional. Estamos em um estado laico colaborativo, que prevê inclusive a colaboração entre Estado e igreja”, afirma.
Proibição de cultos e missas fere o princípio do estado laico
Para Gustavo França, há uma característica paradoxal da proibição de cultos e missas: ela fere o princípio do estado laico, na medida em que o Estado está determinando como as pessoas devem viver sua religiosidade.
“Não cabe ao Estado fazer nenhum tipo de intervenção doutrinária em matéria religiosa. A partir do momento em que o Estado trata a missa católica como se ela fosse uma reunião da comunidade, ele está determinando às religiões qual é a natureza do culto delas. Isso é o Estado doutrinar religiosamente. Está dizendo qual é a natureza do culto religioso, implicitamente. Isso é uma vulneração grave da liberdade religiosa e da laicidade estatal”, diz.
França acrescenta que, para a maior religião do Brasil – o Catolicismo –, a presença física é um aspecto essencial. “A recepção da comunhão eucarística não é simplesmente um rito comunitário. É a recepção, para os católicos, do próprio corpo de Cristo, do próprio Deus feito sacramento. Isso não é possível fazer online”, explica. “A missa não é simplesmente uma reunião da comunidade”.
A falta de conhecimento sobre a importância, para os católicos, da presença física na missa evidencia a necessidade de maior diálogo do Estado com a igreja, diz França. “O Catolicismo é a religião predominante do Brasil e, portanto, por ser uma religião majoritária, deveria ser a primeira a ser levada em conta. É razoável e exigível que as autoridades públicas conversem com as autoridades eclesiásticas na hora de elaborar as normas.”
Não só para os católicos, como também para muitas religiões protestantes, segundo Vieira, a presença física é de grande importância. “Há protestantes que entendem que a ceia e o batismo são sacramentos – não da mesma forma como o católico enxerga, mas também entendem que a ceia é um sacramento, e que o sacramento tem determinados requisitos para se efetivar. São necessários alguns elementos, como a presença física do pastor. Nas igrejas luteranas e de linha calvinista, especialmente, a ceia também é um sacramento. Não prescinde da presença física. Sem a presença física, o sacramento não acontece”, explica.