Refavela?
Comunidades reassentadas são propensas a repetir a informalidade das favelas. Poder público "pisa em ovos" para respeitar passagem dos moradores à nova condição. Transição é melhor quando há permanência de assistentes sociais na área por mais de 6 meses.
1. Vida nova: Unânimes, consultados concordam que, mesmo se favelizando na aparência, famílias tendem a adotar novas práticas ao serem reassentadas. Posse da casa e contrato com a Caixa Econômica demarcam retomada. Presença de técnicos da Cohab, mesmo havendo atrito, muda rotinas de moradores. "Não imaginava que eu ia estar viva para ver minha casa própria. Aqui é meu reino. Eu era dependente. Um médico disse que ia assinar meu atestado de óbito por antecedência. Hoje tô aqui", diz Aline, 25 anos, moradora do Corbélia, na CIC.
2.Comunidade: Em geral, comunidades formam associações e reproduzem modelos do movimento social. O agravante é quando moradores de reassentamentos vêm de ocupações com culturas muito diferentes, demorando a criar vínculos. Muitas delas, como a Corbélia, na CIC, são bairros dormitórios. "Acho que eles já têm identidade. Mas ainda precisamos trabalhar valores. Faltam mais grupos, de crianças, idosos, meio ambiente", diz Ana Carolina Canalle, 31 anos, assistente social na Bacia do Barigui.
3.Comércio: Cohab tem política para garantir a comerciantes de ocupações irregulares um bom ponto nas novas vilas, de modo a permanecer na atividade que lhes dá sustento. Em geral, esses moradores ficam com as esquinas. Moradores reclamam ausência de supermercados e farmácias. Quem olha de fora, espanta-se com o avanço do comércio informal. Secretaria Municipal de Urbanismo alega dificuldade logística em controlar alvarás e não tem números disponíveis.
4. Reformas: Assim como não informam à prefeitura abertura de comércio, moradores tendem a não pedir licença para fazer obras. É um problema. Casas populares não têm fundações preparadas para certas intervenções, como segundos e terceiros pisos. Pesquisa de pós-ocupação (uma exigência do governo federal), feita nas vilas Jandaia (Ganchinho) e Arroio (CIC), indica que 48% já fizeram "puxados". Não há informações se reformas são regulares e seguras ou não. Cohab dá manual de orientação, e oferece um setor de autoconstrução, com sugestões. É de graça, mas até 70 metros quadrados.
5. Venda da casa: Dados sobre especulação imobiliária em áreas de reassentamento ainda estão em processo. Cohab admite que 20% não se adaptam e voltam para as áreas de origem. Imóvel é repassado a quem estiver na vez. Quanto à venda de casas por especulação, pode chegar a 10%, mas na média não deve passar de 5%. Reassentados são informados de que imóveis vendidos deixam de ser subsidiados, e segundos compradores não desfrutam dos recursos de programas como o PAC. Mesmo assim, há quem os troque por um carro ou se renda aos especuladores. Colocar casa no nome da mulher é estratégia bem-sucedida. Elas se desfazem menos dos imóveis.
6. Agregados: Em algumas áreas, como a da Vila Corbélia, na CIC, chega a haver 2 mil famílias para pouco mais de 500 domicílios. Casas de 42 metros quadrados, logo, seriam superpopulosas, graças aos agregados, o que implica em risco social e favelização. Para Cohab, prática não é tão comum: em reassentamentos já pesquisados, 56% das casas têm entre 3 e 5 pessoas. Apenas 5% abrigam 8 ou mais de 8. "Eles vão recebendo mais famílias. É por solidariedade. Mas gera um problema os que chegam querem ser atendidos. E a estrutura não aguenta", diz a assistente social Ana Carolina Canalle, da Bacia do Barigui.
7. Ocupações: Alguns conjuntos habitacionais para reassentados ganharam como vizinhos novas ocupações irregulares, numa espécie de círculo do vício. Para moradores da área regularizada, vizinhos lembram muito o passado, em especial no quesito violência. (JCF)
As assistentes sociais Rosemeiri Morezzi, 38 anos, e Rosiane de Araújo, 50, nunca estiveram em áreas de risco como o Haiti ou Faixa de Gaza. Mas se as mandassem para lá em missão iriam sem dificuldade. Ambas são funcionárias da Companhia de Habitação de Curitiba (Cohab-CT) e coordenam a transformação de ocupações irregulares em vilas comuns. Não enfrentam terremotos, tufões, epidemias ou bombardeios, mas precisam ter nervos de aço, tanto quanto. Regularizar e reassentar, para elas, são verbos sem voz passiva.
A cada vez que uma zona favelizada e são mais de 250 na capital tem seu programa de regularização fundiária aprovado pelo governo federal, é preciso se preparar para batalhas. Duram em média dois anos e funcionam como uma difícil partida de xadrez. Embora na aparência as ocupações sejam parecidas, diferem na história, na organização comunitária, nas expectativas. Cada lugar oferece desafios muito particulares do excesso de cachorros, passando pela briga de vizinhos e ingerência de políticos à intransigência do chefe do tráfico.
Moradores podem fechar as portas dos barracos aos recenseadores, como aconteceu nas áreas conhecidas como Padilha-Xisto e Esmeralda, no Xaxim. Um grupo instalado em um fundo de vale, fincar o pé, sob ameaça de não sair dali nem sob o imperativo das enchentes a exemplo dos moradores da Bacia do Rio Formosa. Sem falar na conhecida solidariedade das classes populares: sempre cabe mais um agregado no quintal, o que põe a perder os orçamentos públicos para certas áreas.
Difícil equação
"Quando chega a hora do reassentamento, tem o dobro de gente do que havia no início do processo. Congelar a área é um problema. Chego lá e o seu João da casa 20 construiu um puxado nos fundos... No Parolin e na Formosa tivemos de contar com a ajuda das lideranças", lembra Rosemeiri Morezzi, do Departamento Social da Cohab-CT.
A gerente, Rosiane e suas equipes têm de lidar com isso. Precisam negociar cada etapa e cada vontade. "Aqui não tem um dia igual ao outro. Resolvemos equações dificílimas. É tarefa de alta complexidade", brincam.
O saldo tem sido positivo, em especial no que diz respeito a uma dessas equações a que promove os "reassentamentos". O termo soa estranho para quem mora numa cidade grande, pois parece associado ao campesinato. Mas é uma palavra chave. Nas zonas de risco como as beiras de rios se encontram as piores condições de moradia. É preciso reassentar. O que muita gente se espanta é saber que as assistentes sociais encontram tanta resistência em convencer os moradores a pegarem sua chave e se mudar para conjuntos habitacionais tinindo de novo.
Motivo: não raro a vida nova é sinônimo de saltar alguns quilômetros de onde estão, longe do trabalho, do Centro e das raízes. Como não há terrenos próximos para todos, exige-se relocações para os arrabaldes, em regime de exceção, ou de desacordo, dirão alguns, com as normativas das políticas de habitação e de direitos humanos. "Eu morava na Vila Leão, no Novo Mundo, agora estou aqui. Me sinto isolado do mundo", lamenta o porteiro Juraci Ferreira da Silva, 47 anos, morador da Vila Arroio, ao lado do "porto seco" da CIC.
Avanços
De 2009 ano em que as regularizações e reassentamentos ganharam impulso para este ano, 6.246 famílias deixaram as margens de rios e se mudaram para vilas recém-criadas, com cujos nomes a população ainda se acostuma: Jandaia, Arroio ou Laguna, para citar três áreas que receberam gente de 62 ocupações das mais castigadas. O número de reassentados nessa leva equivale a mais de 20 mil pessoas, o que corresponde a metade dos curitibanos que vivem ao sabor das águas em seis bacias as dos rios Barigui, Ribeirão dos Padilhas, Iguaçu, Belém, Atuba e Passaúna.
A política de reassentamento pode não ser uma unanimidade, mas é sem dúvida uma reviravolta no cenário urbano. Causa espanto que não seja observado com mais frequência pela sociedade organizada, pelo que representa no combate à pobreza, violência e promoção da infância e da juventude. O próprio promotor da mudança, o governo, peca por isso.
Depois de inaugurado, um reassentamento conta com a presença de assistentes sociais por apenas seis meses. É até onde a verba pública dá. O consenso é de que o ideal seria um período de um ano e meio, de modo a ajudar a comunidade não raro formada por pessoas sem vínculos, oriundas de até seis vilas esparsas por aí a sepultarem as práticas trazidas da informalidade. Vale o trocadilho: elas saem da ocupação, mas a ocupação não sai delas. Políticas mais longevas de pós-assentamento, já.
Vias novas podem parecer dormitórios ou "sucursais" das antigas favelas
A história da moradia popular em Curitiba vive uma nova florada talvez a mais importante. Foi uma verdadeira saga chegar até aqui, a partir de novembro de 1966, quando a cidade abrigou o terceiro conjunto brasileiro do Banco Nacional de Habitação (BNH), a Vila Nossa Senhora da Luz, pioneiro no Paraná. Outras iniciativas vieram, mas não deu muito certo, como se sabe. A cidade continuou a ganhar mais e mais ocupações irregulares, até chegar à proporção de um curitibano sem-teto a cada cinco moradores.
Os demais capítulos passam pela bem-sucedida implantação de conjuntos como o Caiuá, loteamentos do naipe do projeto Bairro Novo também no livro de ouro -, e pela duvidosa política de primeiro deixar ocupar, para depois regularizar. O preço foi violência, degradação do meio ambiente, milícias, atraso educacional, para citar algumas mazelas.
Por essas, o reassentamentos de moradores de beira de rio cujo impulso nos últimos cinco anos é notável merece seu lugar entre as melhores notícias do urbanismo nos anos 2000, para além de seus contornos políticos.
Via de regra, esses moradores estão sendo reassentados nas áreas em que viviam, em zonas secas e seguras. Mas mudança para outros locais se tornaram uma contingência, seja no Cajuru e Uberaba, CIC ou mesmo Santa Quitéria e Novo Mundo. Mesmo em meio a reclamações com a demora do ônibus ou com a falta de mercados, difícil encontrar um reassentado que não se diga "recomeçando a vida". É flagrante o efeito da moradia nas relações de trabalho, familiares, na retomada dos estudos. Aqui e ali, os reassentamentos são um repertório de depoimentos que só confirmam que o direito à habitação muda tudo.
As casas iguais, contudo, não podem ser confundidas a vidas iguais. O Moradias Corbélia, por exemplo, é formado por gente de 12 lugares diferentes, oriundos de regionais como CIC, Portão e Santa Felicidade. Está num alto, de onde a população vê a cidade, um privilégio, com grande incidência de ventos e temperaturas mais baixas do que a média. Mas chegar até ali exige vencer as ruelas da Vila Sabará e seus problemas em cascata.
Em conversa com reassentados, têm-se uma espécie de catálogo do que são as vilas populares e sua brava gente brasileira. O Corbélia é o bairro do aposentado Mizael Cardozo de Souza, 53 anos, que doou parte de sua casa para criar uma igreja evangélica. Tudo no templo é tão bem apurado quanto numa loja elegante. Impressiona. É a vila de Aline e Elias, que conheceram o abandono das ruas e a violência. Hoje vivem às turras com o pedreiro que sumiu. É também o endereço do comerciante João Pelegrini, 63 anos, que tem saudade de morar mais perto do Centro um sentimento comum a todos.
O Moradias Laguna, no Tatuquara, igualmente merece figurar entre um dos laboratórios da Curitiba reassentada. Nasceu para abrigar os que estavam em zona de risco no Vila Terra Santa que em tempos idos, só de ser falada, causava calafrios. Laguna e Corbélia só são semelhantes no layout das casas. A vila da CIC é silenciosa e tomada por rabiolas nos fios de luz e crianças na porta do Picolé Skimó. A do Tatuquara criada debaixo das torres da Copel é território de som alto saindo das casas, legiões de cachorros de rua, e tanto comércio que é mais fácil contar as moradias que não viraram portinhas. "Sentimos falta do pessoal da Cohab-CT. Era bom quando eles andavam por aqui", diz a aposentada Maria José da Silva.
No Laguna se repete a máxima de que vila popular alterna uma igreja e uma mesa de bilhar. Pode-se ver as mesas nas garagens. Sempre tem um morador para sussurrar que algumas coisas ruins do Terra Santa vieram para o Laguna. A Cohab já registrou casos de famílias que pediram para mudar de endereço dentro da comunidade, temendo a vizinhança "de poucos amigos".
Outra "tipologia" é o Moradias Arroio, ao lado do "porto seco", na CIC. É vila pequenina e artificial, nascida em meio àqueles entroncamentos de rodovias próprias da região industrial. A exemplo do Corbélia, parece um dormitório. Ainda não há associação de moradores. O comércio só se desenha. Na falta de um representante, os moradores apontam o ex-craque Calita - Carlos Marques da Luz, 78 anos como o ilustre que faz do Arroio um lugar de verdade. Ele exibe suas glórias nos campos, guardados numa pasta de recortes de jornal. "Pede para o Calita mostrar a pasta", grita um. Calita mostra. Depois conta que vivia no Bigorrilho. Paciência. E que varre a frente a calçada todos os dias. É um cuidado que não dispensa.
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