A Curitiba que viu a neve cair em 17 de julho de 1975, somava próximo de 650 mil habitantes, 30% da população de 2015. Tinha 32,6 mil automóveis – 3% da frota que circula agora. O grosso dos moradores, ou andava a pé, de bicicleta, ou “pegava” condução – podia-se escolher entre 121 linhas, distribuídas por 769 ônibus, de uma dezena de empresas.
Mais? Havia 21 escolas municipais, contra quase 200 de agora. Estudar no Estadual do Paraná e congêneres era o que havia. Todas as instituições tinham uniforme de gala. Não se tratava de cidade de todo rica, mas a pobreza extrema, para muitos, se resumia à Vila Capanema e ao Inferninho de Santa Quitéria. No ano da neve, Curitiba tinha 35 favelas, onde moravam 4 mil famílias, algo próximo de 20 mil pessoas. Em 40 anos, esse número saltou para 254 áreas de ocupação, o que implica em um sem-teto para cada 5 curitibanos.
Certos confortos de hoje em dia eram impossíveis até para a família futuristas de Os Jetsons – o desenho “enlatado” que passava na televisão. Menos de 100 mil pessoas tinham linha telefônica em casa. Dava-se uma linha de presente de casamento – um presente sem data para ser entregue. A instalação demorava uma eternidade e mais um dia.
Na Curitiba de 1975, quase tudo de importante acontecia no Centro – então com 37 mil habitantes. É o único número que permanece o mesmo, 40 anos depois, mas por razões diferentes. Em 1975, era o bairro mais importante da cidade, endereço de 35% da população. Em 2015, a exemplo das demais capitais brasileiras, luta contra a decadência e a evasão.
Febre da neve
A nevasca que deixou Curitiba Branca de Neve, como “mancheteou” o jornalista Mussa José Assis, no jornal O Estado do Paraná, causou uma explosão de sociabilidade. Parte dessa reação se deve a uma espécie de “viral” em torno do Centro. Foi ali que arrombou a festa, para emprestar uma expressão da época. O cartunista e publicitário Luiz Antônio Solda, então com 22 anos, empregado na Agência Lema, na Osório, foi uma testemunha ocular da história.
Entrava no trabalho às 9, mas às 7 estava a postos – ele e o resto da cidade, que jogou para o alto os pesados acolchoados e as colchas de chenile. “Da janela do ônibus percebi que algo estava diferente. As ruas ficaram cheias de gente”, conta Solda, que movido pelas temperaturas na casa do 1 negativo tomou o primeiro gole de conhaque matinal de sua vida – no que foi seguido por muitos. O dia da neve marcou tanto que o cartunista arrisca uma teoria: “Precisou nevar para Curitiba perder o gelo. A cidade ficou mais legal a partir daí.”
Há controvérsias. O radialista e repórter policial mais famoso da época, Ali Chaim, achava que Curitiba já era legal antes da neve de 1975, em especial a bordo de seu Fusca branco, com o qual circulava “pelas quebradas”, em busca de uma crônica de paixão e morte, suas preferidas. Mas concorda que o Centro era um cachorro atrás do próprio rabo. Melhor, a Praça Osório, onde estava de tudo um pouco – as “bocas”, os restaurantes, “os pés-sujos”. Quem quisesse um programa mais elegante, que andasse até a Boca Maldita para pegar um cineminha, no “Avenida”.
Era o que fazia o então sextanista de Medicina Carlos Eduardo Zimmermann, por acaso às voltas com o ofício que o tornaria um dos maiores nomes das artes plásticas do país. “Precisava que umas telas secassem, e nada. Tinha exposição marcada na Galeria Ipanema, no Rio de Janeiro. Varei a noite e vi a neve de madrugada”, conta. “Foi um presente para a cidade”, resume.
Àquela altura da vida, acreditava estar no melhor dos mundos. Não temia a violência, encontrava os amigos com facilidade – na Central de Ingressos do Calçadão ou na casa de alguém, para ouvir um LP novo na praça, como se não houvesse amanhã. O Museu de Arte Contemporânea tinha sido recém-inaugurado e galerias como Cocaco, Acaiaca e Ida e Anita cumpriam a função de colocar Curitiba no mapa do mundo. “Não gosto de ser nostálgico, mas...”
Os três joões
O fotógrafo Nego Miranda estava no Rio de Janeiro em 17 de julho. Quando setembro chegou, voltou e encontrou uma Curitiba, digamos, mais primaveril. “Era uma cidade sendo construída. Os bairros eram menores. Para encontrar gente bastava ir a bares como o Palácio e o Stuart”, descreve, no que encontra quem com ele faça coro. “Era uma cidade que conversava muito consigo mesma, saca...?”, resume o então estudante de Engenharia Civil Luiz Alceu Beltrão Molento.
Beltrão viria a se tornar um dos reis da boemia em Curitiba, dono, dentre outros, do mítico Hermes Bar. O modelo de vida noturna em 1975 lhe parecia sob medida: ninguém precisava pagar os tubos de couvert para ouvir boa música. Da sua lista das mais-mais fazem parte o Leleco, perto da Reitoria; o Si bemol, na Alameda Cabral; o Túnel, na Comendador Araújo.
No mais, a lista é pontificada pelo Bar Cometa, também na XV e de frente para um dos espaços culturais que temperavam a Curitiba 1975 – a Livraria Ghignone. Quisesse ver o Leminski, era só ir até lá: ele estava de um dos dois lados da rua. E para quem acha um, pouco demais essa afirmação leminskiana de “Rio é mar, Curitiba é bar”, vale lembrar que a noite foi um dos espaços de resistência durante o regime militar. Diz Beltrão: “As pessoas iam a esses locais para discutir projetos artísticos, dilemas sobre a profissão e sobre a vida e, claro, sobre a política. Os militares estavam no poder havia 11 anos”. A neve, no mais, era tão surreal quanto todo o resto.
O jornalista curitibano Daniel Emmendoerfer de Castro, 24 anos, radicado em São Paulo, não era nascido no sacrossanto ano da neve. Mas se dedicou a ela no livro reportagem Curitiba, a outra. Gostaria de ter visto a capital que acordou feliz – a ponto de as lojas de disco tocarem músicas de Natal, em pleno mês de julho, mas está vacinado .
Para ele, a neve revelou uma Curitiba ambígua, invisível para a classe média que dançava nas domingueiras do Clube Thalia ou se deliciava com o bom rock da banda A Chave. O frio que castigou a economia em 1975 e 1976 pôs à baila as periferias cada vez mais inchadas. Teve criança que bebeu álcool e tudo mais, lembra o autor. O mundo cão, como se dizia, não esfriou debaixo de neve. Chaim teve trabalho em 17 de julho. Dois joões morreram naquela madrugada, na Santa Helena e na Boa Vista. Pouco se sabe deles até hoje.