O efeito do restauro da Ferragens Hauer não se limita à paisagem – atiçou também a memória e o imaginário da população. Os “Hauer”, afinal, não deixaram suas marcas apenas na ruela atrás da Catedral Metropolitana. Marcaram o comércio e a indústria da capital paranaense, assim como sua geografia. Bairros como Hauer, Boqueirão, Lindoia, Fanny nasceram em terras desses alemães vindos de Breslau, hoje território da Polônia. Muito do que há de mais valoroso na arquitetura eclética do Centro pertencia a eles – e se inclua aí o “Relógio do Sol” da Tiradentes. São muitas as perguntas, inclusive sobre o suposto fim desse império familiar. E o mais curioso – são também muitas as perguntas feitas pela própria grande família do pioneiro José Hauer Senior, que chegou a Curitiba em fins de 1863.
Ferragens Hauer renasce no Centro
Prédio erguido há 117 anos dá novo fôlego à paisagem da região e chama a atenção para o legado da família que impulsionou a economia da cidade
Leia a matéria completaO psicólogo Carlos Hauer, 52 anos, e o advogado e empresário do ramo imobiliário, José Augusto Hauer, 51, o Zeca, deram-se conta de que algumas lendas se sobrepuseram às verdades sobre a família. Foi em 2013, quando ajudaram a organizar uma grande festa para marcar os 150 anos da chegada de José Hauer Senior à capital. O evento ocorreu em grande estilo, na Casa Vermelha. Reuniu 230 pessoas, um número longe de ser o total dos descendentes. Cada um ganhou uma caneca de chope como lembrança. Carlos e Zeca levaram mais do que isso: a vontade de formar um acervo de cartas, documentos e fotografias dos antepassados.
Fizeram contatos e pedidos ainda no encontro. Obtiveram algumas respostas, inclusive dos primos que vivem na Europa e em outros estados, como Mato Grosso e Rio de Janeiro. Carregam o tesouro em pastas forradas de papéis que vão chegando daqui e dali. Em quase dois anos de trabalho, a dupla sonha com um livro, desta feita menos passional do que costumam ser as sagas do gênero, por mais desafiador que seja falar de uma figura como José. Mesmo sem serem historiadores, ocupam-se antes de tudo de conferir registros de imóveis, por exemplo, e cartas entre os irmãos Hauer, entre outras, corrigindo os equívocos dos testemunhos orais.
Tem sido o bastante para derrubar, ao menos em parte, uma das crenças mais sólidas formadas em torno do grupo – a de que a fortuna se diluiu por causa de disputas internas entre os 12 dos 14 irmãos que mudaram para o Brasil. Não faz sentido, afinal não formavam uma única empresa, o que descarta o caso clássico de bancarrota de um conglomerado familiar. Cada irmão de José construiu seu próprio patrimônio, ainda que em alguns em pequenas sociedades. Logo não quebraram juntos, ou sequer quebraram, “pois estavam em ramos bem diversificados”. No mais, as cartas mostram que os Hauer continuaram se comunicando e visitando mesmo após a volta de José para a Alemanha no início do século 20, onde viveu perto de 25 anos.
Em branco e preto
Outro ponto a favor dos dois entusiastas são as fotografias. Gente de posses, os Hauer, juntos, formam um dos mais portentosos acervos de retratos de todo o estado, ombreando com os magnatas do mate, como os Leão e os Fontana, por exemplo. Não escapa a esse acervo o cotidiano e os expedientes fabris e comerciais. A crescente abertura da historiografia para as imagens permite que se estude ali hierarquia doméstica, condição feminina, moda, lazer, interiores das casas, mobiliário. É um achado.
Para não se perder, Carlos e Zeca carregam a tiracolo uma minuciosa árvore genealógica, de modo a entender tantas ramificações. Os casamentos dentro da comunidade alemã do Paraná e de Santa Catarina os ligam a tantos outros clãs que mesmo um genealogista experiente corre o risco de se perder. O resultado desse empenho impressiona. Como qualquer Hauer, ambos receberam como herança de histórias contadas pelos pais. A importância da família lhes foi dada com adjetivos. Agora está sendo medida em dados.
“José está entre os que trouxeram a luz elétrica para Curitiba. Fez um teatro [na 13 de Maio com a Mateus Leme]. Construiu prédios na Praça Tiradentes. Tinha visão, impossível negar”, exemplifica Carlos, ao citar outros feitos do patriarca e dos seus. Eles participaram não só do comércio, mas agricultura cafeeira, da tecelagem e da indústria naval, assim como do desenvolvimento da vida social – com eles se cidade ganhou clubes, dos mais diversos, e conheceu a filantropia.
Os muitos Hauer estão na origem do Coritiba F.C, da Santa Casa e da Sociedade Thalia, para citar três. A mítica Casa Louvre, tecidos? Pois foi de um Hauer. Nem só com ferragens de Francisco Hauer eles se fizeram. Ciclismo? Ponha-se na lista um sujeito chamado Arthur Hauer. “Estamos juntando as pontas. É uma maratona”, ilustra Zeca. Ninguém discorda: mais de um Hauer é personagem digno de estudos. Caso de Roberto Hauer, que chegou a ser preso pelo General Saraiva durante a Revolução Federalista, em 1894. Tão ímpar quanto o irmão José, abanou bandeira branca na batalha e teria oferecido dinheiro para que poupassem Curitiba de ataques.
A quantidade de terras, claro, causa piadas e espanto até hoje. “Do Novo Mundo até o Rio Belém era do Roberto Hauer. Quanto às terras, do Belém em diante os alqueires pertenciam a José Hauer. Convenhamos, as terras eram baratas”, ilustram os pesquisadores. Colocada na ponta do lápis, o que na Curitiba da primeira metade do século não era colônia eslava – a Nova Polônia – era uma imensa “Vila Hauer”. Quanto ao peso do sobrenome, eles não negam: nos tempos de escola cansaram de ouvir “ah, mas você é rico”. Ninguém lhes pagava o lanche. Eis o preço.
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