Jovem guarani quer voltar para Mangueirinha
Nem Cambuí, nem Kakané-Porã. Laurecir Fernandes, o Karai "espírito do sol", em guarani quer mesmo é voltar para a Reserva de Mangueirinha, de onde acha que nunca deveria ter saído. Ele tem 20 anos, concluiu o ensino fundamental e repetiu em Curitiba a rota de outros indígenas: trabalhou num restaurante durante seis meses e foi ao inferno. "Ninguém entendia o que eu falava. Sem dizer os que nos chamam de bugres", conta.
Com camiseta moderna e brinco de falso brilhante, ele poderia passar despercebido, "mas as pessoas sabem que somos índios por causa da curiosidade com que olhamos as coisas." Karai só conhece o Centro da cidade e sonha ir a um estádio de futebol.
Depois da demissão, o remédio foi se juntar aos oito artesãos de sua família, com os quais divide seus ganhos, motivo de sua permanência em Curitiba. A informalidade atinge 40% dos moradores do antigo Cambuí. A expectativa do rapaz em se adaptar em Kakané-Porã é baixa. "Preciso de um lugar para caçar e para pescar. Não vou dizer que não gostaria de ter um carro. Mas não me sinto atraído pela cidade."
Não é seu único problema. Como a aldeia é formada por apenas 35 famílias, as chances de casamento entre os jovens são reduzidas. Para os padrões guaranis, Karai já é um solteirão. O fato de não ter se firmado financeiramente só piora as coisas. Resta-lhe fazer carreira no artesanato. Que Kakané-Porã lhe seja leve. (JCF)
O indigenista Edívio Battistelli, 53 anos, precisou recorrer a seus conhecimentos lingüísticos para batizar a primeira aldeia urbana do Sul do Brasil instalada oficialmente a partir de hoje, pela prefeitura municipal, no bairro de Campo de Santana, Zona Sul de Curitiba. Não podia errar na mão. Por isso, decidiu recorrer à mestiçagem, juntando uma palavra em caingangue e outra em guarani, de modo a homenagear duas das três etnias que habitarão a área. A terceira é a xetá, em extinção. O resultado foi o inspirado Kakané-Porã, que significa "fruto bom da terra". Se fizer jus ao nome, o local criado para abrigar 35 famílias pode sinalizar que a capital célebre pela reverência com que trata os imigrantes europeus finalmente abraçou suas raízes brasileiras.
Vai ser preciso mais do que boas intenções para Kakané-Porã virar um modelo nacional de aldeia urbana. Os conflitos entre o poder público e os "índios do asfalto" na cidade remontam à década de 70, quando se teve indício de que uma comunidade multiétnica se formava nas barbas de Curitiba. Eram indígenas saídos de reservas como a de Mangueirinha, hoje com 2,7 mil moradores, em busca de melhores dias num grande centro, tal como fizeram milhares de nortistas foragidos da geada negra. Não por menos, os "filhos da terra" acabaram se confundindo com os moradores da periferia, hoje um exército de 200 mil sem-teto. O agravante era que quanto mais integrados aos costumes metropolitanos, mais se distanciavam de suas origens. "Nossas crianças não sabiam o que era um animal", lembra o advogado Alcino de Almeida, 52 anos, um dos líderes dos índios curitibanos. Foi quando veio o "dia do basta".
Há seis anos, a comunidade conhecida como Aldeia Velha, instalada numa das margens da BR-277, se rebelou e decidiu ocupar uma área de proteção ambiental, a APA do Cambuí, com 28 alqueires, onde havia trabalhado o cientista e ambientalista João José Bigarella. Mata fechada, às margens do Rio Iguaçu e avizinhada do Bolsão Audi-União o local é impróprio para moradia e não permite nenhuma espécie de cultivo, como o milho. Mas ficar ali era uma estratégia para fazer avançar um debate que parecia não empolgar nem antropólogos das universidades o direito dos índios à cidade.
Não há, de fato, muitos exemplos de integração em que se inspirar. Segundo a Funai, 345 mil índios vivem em reservas e 150 mil dispersos nos centros urbanos. As aldeias instaladas em Campo Grande, Manaus ou em São Paulo rapidamente foram engolidas pelas periferias violentas e carentes de infra-estrutura, como observa o ongueiro Oswaldo Eustáquio Filho, da organização não-governamental Aldeia Brasil. "Muitos índios da cidade não têm como pagar luz e água. A saída para eles são projetos ecológicos, como ervários, nos quais podem mostrar seu potencial. É preciso projetos de geração de renda."
A questão é controversa. É de consenso que não faz sentido trazer para o perímetro urbano o modelo paternalista das reservas. Mas isso não significa negar políticas de inserção indígena. Índios da cidade estudam em escolas públicas, dividem mercado de trabalho com ambulantes, enfrentam a fila do ônibus e do supermercado, mas quando o assunto é a diversidade cultural, as desvantagens são flagrantes. Kakané-Porã nasce com o desafio de dar um empurrãozinho nesse quesito. "Decidimos não impor regras e respeitar as lideranças. Eles vão encontrar uma fórmula de convivência nesse novo espaço. Vamos estar a postos para ajudar", explica a arquiteta Melissa Kesikowski, diretora de Regularização Fundiária da Cohab-CT, no meio da taba que servirá de espaço para dança, culto e assembléias dos kakanenses.
O projeto de Campo de Santana é resultado de rodadas de negociação entre as lideranças do Cambuí e as da Cohab-CT. Foi dali que surgiu o desenho de um lugar "quase" comum. A aldeia, que a partir de hoje abriga 150 pessoas, sendo 40 crianças, tem 44 mil metros quadrados, 9 mil metros quadrados de bosque, área para cultivo e reflorestamento. Mas tem também descendentes de poloneses e italianos na redondeza, o trânsito que leva à Caximba bairro do qual a aldeia é vizinha e a incumbência de se tornar sustentável. As moradias de 43 metros quadrados e dispostas em forma de taba não dispõem de cerca divisória e contam com varanda para que ali os moradores possam fabricar artesanato, fonte de sustento de 90% dos habitantes.
Apesar da placa provisória "proibido entrar", o cacique Carlos Luiz Dos Santos, o Kajer, 40 anos, quer transformar Kakané-Porã num entreposto de venda de brincos, colares e demais adornos, produzidos em kakupri e embira. É uma urgência. Pesquisa da Cohab-CT publicada mês passado mostra que os indígenas que moram em Curitiba se aproximam, e muito, da média das famílias brasileiras. Os clãs são de quatro pessoas e o período de exposição à escola se aproxima dos oito anos. O mesmo não se pode dizer da absorção ao mercado: apenas 16,36% têm trabalho regular, apontando a dificuldade dos pele-vermelhas em se adaptar à lógica corporativa.
Basta um dedo de prosa com um deles para ouvir histórias dramáticas sobre o tempo em que atuaram na construção civil ou no setor de serviços, expostos, invariavelmente, à discriminação. O artesanato acaba sendo uma forma de convivência urbana possível, além de uma atividade na qual o índio é aceito. A visibilidade de Kakané será fundamental para que atraia parceiros comerciais, já que o mesmo não acontecia no Cambuí. Embora estivesse numa área nobre da cidade na Comendador Franco, bem na divisa com São José dos Pinhais , a reserva ambiental é quase um esconderijo. É comum ouvir dos curitibanos que nem sabiam de sua existência, o que colabora para a aura de exotismo que rondava a mata povoada de Indiamaras e Indioaras. No Campo de Santana apesar da distância do Centro as chances são maiores. O projeto de R$ 800 mil custeado pela prefeitura salta aos olhos de quem passa na Estrada Delegado Bruno de Almeida e, com sorte, pode de fato se tornar um entreposto turístico-cultural.
Um aviso aos navegantes. Não espere ir até lá brincar de índio. Em 30 anos de cidade grande, os guaranis, caingangues e xetás mudaram um bocado. Contrariando a tradição, a aldeia tem uma vice-cacique, a articulada Jovina Donato de Oliveira, a Renh-ga, 40 anos. Detalhe, ela foi eleita democraticamente pela comunidade, na base do feijão preto, feijão branco. Tanto Renh-ga quanto Kajer permanecem no posto enquanto servirem bem à comunidade. Do contrário, nova eleição. Ah, se essa onda pega.
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