Há duas ou três gera-ções, professores ainda submetiam seus alunos irrequietos às mais duras penas, resquícios dos castigos físicos introduzidos no país pelos padres jesuítas no século 16. Símbolo de disciplina no Brasil Colônia, a palmatória só foi abolida por aqui no início do século passado. A sociedade moderna não tolera mais os castigos humilhantes, como ajoelhar em milho e usar chapéu de burro, embora eles fizessem parte da rotina escolar brasileira há não mais do que três décadas. A solução para sossegar os pequenos bagunceiros ou chacoalhar os mais lentos agora está à venda nas farmácias, um caso raro de cura descoberta antes da doença.
A Organização Mundial de Saúde reconheceu o diagnóstico do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH) há 20 anos, enquanto seu mais popular agente controlador, a Ritalina, é comercializada desde 1956 nos Estados Unidos. Mas ela e seus similares estão longe da unanimidade entre pais, professores, médicos e outros especialistas que tratam de crianças com um quadro de agitação, impulsividade e dificuldade de concentração. Dependendo de quem opine, ela pode desempenhar tanto o papel de mocinha quanto o de bandida. A inclusão do TDAH como síndrome neuropsiquiátrica fez da Ritalina um mito a ser desvendado. Um mito cercado de dúvidas e preconceito.
O TDAH consiste de anomalias bioquímicas que não deixam lesões anatômicas, mas interferem na produção dos neurotransmissores dopamina e noradrenalina no cérebro. Medicamento de tarja preta, vendido sob prescrição médica e retenção da receita, a Ritalina regula a emissão destas substâncias uma boa notícia para pais e professores de crianças espevitadas. Os distúrbios de concentração têm sido apontados como causa do mau desempenho escolar, uma deixa para a droga despontar como solução para facilitar o aprendizado. É na escola que os problemas mais aparecem porque os hiperativos são avessos a normas. Embora possa parecer, o transtorno não faz discriminação de gênero.
O presidente da Associação Brasileira do Déficit de Atenção (ABDA), Paulo Mattos, explica que o problema é mais visível nos meninos porque eles apresentam mais os sintomas da hiperatividade e menos os de desatenção, exatamente o oposto das meninas. E quem incomoda mais, aparece mais. Contudo, muitas vezes o distúrbio fica oculto. Os 30 anos de experiência da psicopedagoga Maria da Graça Veiga Conceição levaram-na a perceber o despreparo das escolas para receber os alunos "diferentes". Ou são reducionistas e alegam falta de estrutura para atendê-los, ou são paternalistas, colocando-os no papel de coitadinhos. Ela acredita nos bons resultados da Ritalina, mas alerta para os excessos.
Não dá para enquadrar toda criança arteira no rol do TDAH e entupi-la de remédio. O exagero preocupa outra psicopedagoga, a mestre em Educação Laura Monte Serrat Barbosa. Com 30 anos de atuação com crianças e adolescentes, ela percebeu que no Brasil o problema começou a ganhar corpo por volta de 1995. A opinião das duas psicopedagogas tem pontos em comum. Para Laura, a maioria das crianças conseguiria se recuperar sem a medicação.
Já Maria da Graça tem observado que o medicamento dá bons resultados para alguns, mas não para todos. Cabe aos pais e ao neuropediatra ficarem atentos aos efeitos, aparentes logo nos primeiros dias. Só não dá para ficar refém da patologia, diz ela. O conselho é simples: se o remédio faz bem, por que não usá-lo? Contudo, Maria da Graça alerta que o diagnóstico deve ser feito por especialistas e a decisão deve partir dos pais. Ainda assim, há o risco de atribuir à Ritalina qualquer variação comportamental da criança. Por puro preconceito, aponta ela.
Laura vê a causa do distúrbio no modo de vida atual, competitivo e individualista, mergulhado num paradigma informático que exige ações e reações muito rápidas. Impotente, a família dá tudo o que os filhos querem, mas não lhes dá atenção. Ela perde o controle e transfere o problema para o médico, que analisa os sintomas e, em geral, receita remédios. Isso acontece porque os pais não acompanham a rotina dos filhos. "Medicar é mais rápido e fácil", conclui. O tempo da criança diante da televisão e do computador é diretamente oposto à pouca atenção dada pelos pais.
Para o presidente da ABDA, também professor de Psiquiatria da Universidade Federal do Rio de Janeiro, a saúde mental é o único ramo da medicina em que ainda há controvérsias desse gênero. Para Mattos, qualquer argumento pressupõe pesquisa, não achismo. O TDAH causa sérios prejuízos ao portador e ele diz já ter consultado cem artigos científicos apontando que a medicação é capaz de minimizar a deficiência. "O remédio não diminui a inteligência, só aumenta a atenção", diz. Ele argumenta que a Ritalina existe há 50 anos e qualquer problema já teria aparecido. Porém o medicamento não está livre de efeitos colaterais, como a insônia, perda de apetite e tiques nervosos.
Segundo Mattos, o transtorno é subdiagnosticado em todo o mundo. "No Brasil, se considerarmos as estimativas mais conservadoras da literatura científica, existem 3,6 milhões de portadores, entre adultos e crianças." De acordo com especialistas, quando a criança ou adolescente com TDAH não são tratados adequadamente, correm risco de repetência escolar, abandono dos estudos, depressão, transtorno bipolar, problemas vocacionais e de relacionamento, além de abuso de drogas.