Apontando liberdade de expressão e a possibilidade de embates de visões opostas previstas pela Constituição, o Tribunal de Justiça do Distrito Federal (TJ-DFT) negou esta semana que uma influenciadora católica de 19 anos indenize a ativista pró-aborto Debora Diniz em R$ 50 mil por danos morais.
A doutora em antropologia processou a jovem Giovanna Laranjeira Panichi, estudante de Economia da Universidade de Sorbonne, na França, após a garota questionar seu trabalho e apontar sua relação com ONGS estrangeiras. O juiz de primeiro grau Carlos Eduardo Batista dos Santos foi favorável à estudante, mas Debora entrou com recurso contestando a sentença.
O pedido foi negado pela 5ª Turma do TJ-DFT por unanimidade, e o resultado em segunda instância foi publicado no Diário Oficial da União (DOU). De acordo com a decisão, o Tribunal de Justiça manteve a sentença favorável à Giovanna, que não precisará indenizar a pesquisadora, realizar retratação pública ou retirar do ar o vídeo com seus questionamentos.
“A liberdade de expressão é a regra, devendo ser limitada excepcionalmente e apenas quando seu exercício abusivo causar lesão aos direitos individuais de terceiros”, afirmou o voto da desembargadora Maria Ivatônia Barbosa dos Santos, relatora do caso.
“Quando exercida em face de pessoas públicas e relacionada a temas de interesse geral, a liberdade de expressão ganha ainda mais relevo frente aos demais direitos titularizados pelo sujeito”, continuou a magistrada, pontuando que figuras públicas costumam enfrentar “maior controle de suas atitudes, através de críticas, opiniões e prejulgamentos”.
A decisão, acolhida por todos os desembargadores da 5ª Turma do TJ-DFT, cita ainda que o posicionamento apresentado pela estudante de Economia revela “o embate de duas visões e propostas absolutamente opostas”, e não feriu a dignidade e personalidade humana da pesquisadora.
Por isso, foi mantida também a determinação contra Debora Diniz, que precisará pagar os custos processuais gerados à estudante. O valor fixado foi de 12% do total da ação, o equivalente a R$ 6 mil.
A Gazeta do Povo entrou em contato com a defesa de Giovanna, mas os advogados preferiram não se manifestar porque o caso segue em sigilo por solicitação da pesquisadora. Segundo o DOU, o segredo de justiça foi concedido porque a professora é acompanhada pelo Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, Comunicadores e Ambientalistas (PPDDH).
A reportagem também tentou contato com a pesquisadora Debora Diniz, mas não obteve retorno até o fechamento dessa reportagem. O espaço segue aberto para manifestação.
Por que Debora Diniz processou uma estudante de 19 anos?
A ação foi iniciada por Debora em 2023, após Giovanna publicar um vídeo nas redes sociais contrariando estatísticas da Pesquisa Nacional do Aborto apresentadas pela especialista. A Gazeta do Povo já fez reportagem apontando falhas na pesquisa.
Segundo a estudante, os números citados por Debora a respeito da quantidade de abortos realizados no Brasil — 500 mil anualmente — seriam mentirosos, pois o trabalho é baseado na quantidade de internações em decorrência de todos os abortos registrados no país: provocados ou que ocorreram naturalmente. Giovanna apontou ainda a relação de Debora com ONGs estrangeiras favoráveis à descriminalização do aborto.
O vídeo foi publicado dia 13 de setembro de 2023 e apresentou trechos gravados pela ativista Debora Diniz em sua conta no Instagram no dia anterior. Na ocasião, a pesquisadora aproveitou o início do julgamento da ADPF 442 — que poderia legalizar o aborto até a 12ª semana de gestação a pedido do PSOL e do Instituto Anis — para abrir um espaço de perguntas e respostas em suas redes sociais. Uma das respostas foi contestada pela influenciadora.
Debora solicitou retirada imediata do vídeo, mas o pedido foi negado
A doutora em antropologia teve acesso ao conteúdo e acionou a Justiça com pedido de urgência para exclusão imediata do vídeo. Segundo o documento encaminhado por Debora à Vara Cível de Brasília, as informações se tratavam de “fake news” ditas para “ofender, difamar e macular” sua honra.
A professora alegou também que Giovanna estaria sugerindo a existência de uma “agenda oculta” por trás de sua atuação profissional. No entanto, a defesa da jovem afirmou que a suposta agenda seria clara: a descriminalização e legalização do aborto no Brasil, e acrescentou que os financiadores da pesquisadora são citados no currículo público de Debora Diniz na plataforma Lattes.
O juiz Carlos Eduardo Batista dos Santos, da 2ª Vara Cível de Brasília, indeferiu o pedido liminar de exclusão do vídeo publicado pela estudante. Debora recorreu da decisão, e a remoção foi negada novamente.
A pesquisadora exigiu retratação e indenização de R$ 50 mil
Apesar das decisões contrárias na liminar que pedia retirada do vídeo, Debora seguiu com o processo e exigiu, além da exclusão da postagem, retratação pública e indenização no valor de R$ 50 mil. A sentença, no entanto, foi favorável à estudante em março de 2024 e ordenou que a professora pagasse as custas processuais da jovem.
A pesquisadora entrou, então, com recurso no TJ-DFT reiterando seu pedido de indenização. Segundo ela, o caso não se inseria no escopo da liberdade de expressão, mas de “propagação de fake news”, já que a estudante afirmaria que os dados de suas pesquisas seriam “falsos”, enganando a comunidade científica, e que seus estudos seriam pagos por terceiros com uma “agenda maliciosa”.
“As violações traduzidas na divulgação de notícias distorcidas sobre as supostas fontes de financiamento de Debora Diniz já percorrem a internet há anos, sem que qualquer veículo ou indivíduo tenha sido bem-sucedido em provar tais alegações”, informou o pedido de recurso encaminhado ao TJ-DFT em maio de 2024.
Defesa da estudante apontou tentativa de censura e de limitação do debate
Em documento que a Gazeta do Povo teve acesso, a defesa da estudante apresentou ao Tribunal as fontes das informações citadas pela jovem em seu vídeo, como parte do artigo “Aborto no Brasil: uma pesquisa domiciliar com técnica de urna”, de autoria de Debora Diniz e Marcelo Medeiros, em que a própria professora admite limitações em sua pesquisa.
Foram apresentados ainda trechos de discussões realizadas em audiências públicas no Supremo Tribunal Federal (STF) referentes à ADPF 442, em que especialistas trouxeram objeções e críticas aos dados estatísticos expostos pela pesquisa de Debora.
Além disso, a defesa apontou que o processo contra a estudante representaria, na verdade, uma “audaciosa tentativa de censurar o contraditório e promover a limitação de um debate tão crucial para a sociedade brasileira”.
Liberdade de expressão é garantia da democracia e da liberdade
Para isso, afirmou que a liberdade de expressão é uma garantia da democracia e da liberdade, citando o voto da Ministra Rosa Weber, na ADPF nº 496, de junho de 2020, sobre o tema. “De toda sorte, a proteção constitucional independe da virtude das ideias, da popularidade das crenças, da utilidade das opiniões ou da veracidade das afirmações manifestadas, e reconhecer assegurado o direito à crítica não significa endossá-las em nenhuma medida”, avaliou a ministra.
A magistrada também apresentou em seu voto a frase creditada a Voltaire, “posso não concordar com nenhuma palavra do que dizes, mas defenderei até a morte o direito que tendes de dizê-las” e pontuou que, “uma sociedade em que a manifestação do pensamento está condicionada à autocontenção, por serem os cidadãos obrigados a avaliar o risco de sofrerem represália antes de cada manifestação de cunho crítico que pretendam emitir, não é uma sociedade livre, e sim sujeita à modalidade silenciosa de censura do pensamento”.
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