A cadeira de Fernanda Montenegro já pertenceu a Antonio Houaiss. A de Merval Pereira, a Moacyr Scliar. A de Gilberto Gil, a Emílio de Meneses. A de Paulo Coelho, a Dias Gomes. É como se, a cada sucessão, a Academia Brasileira de Letras deixasse a qualidade literária para trás.
Vale notar que, no artigo 1º de seu estatuto, a Academia declara seu princípio: “A Academia Brasileira de Letras, com sede no Rio de Janeiro, tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional”. O documento foi assinado em 28 de janeiro de 1897 por, dentre outros, Machado de Assis, o presidente, e Joaquim Nabuco, o secretário-geral.
Mais de 120 anos depois, a ABL é alvo de questionamentos de vários setores. Parte deles, ligados aos movimentos identitários, reivindica uma participação ainda maior de autores diversos daqueles do perfil do cânone literário - o homem branco, heterossexual e do sudeste. Mesmo com diversas mulheres autoras, assim como nordestinos, já ocupando as ilustres cadeiras.
De outro lado, temos as críticas dos setores que, no debate público, estão ligados aos grupos ditos “conservadores”. Estes dizem que a academia tem desprestigiado a literatura em prol de outras manifestações culturais. Gilberto Gil, músico, ocupa a cadeira nº 20 e Fernanda Montenegro, atriz, ocupa a cadeira nº 17. A adesão total ao Acordo Ortográfico e a submissão às pautas identitárias também desagradou muita gente. Na seção “Novas Palavras” do site, só aparecem aquelas bem ao gosto de quem vê nas palavras uma forma de luta social: “antirrascista”, “capacitismo”, idadismo” e “letramento racial”.
As críticas de ambos os lados revelam, na verdade, uma questão de fundo: a decadência da instituição. A ABL deixou de ser, há muito tempo, uma instituição relevante e está longe de cumprir o que prometeu no artigo 1º: “tem por fim a cultura da língua e da literatura nacional”. Se é que um dia cumpriu.
Por que temos uma ABL?
Em um Brasil de forte influência francesa, um grupo de escritores decidiu criar uma Academia de Letras, nos moldes da Academia Francesa, fundada em 1635, no reinado de Luis XIII. A longeva instituição francesa, como aqui, é também hoje alvo de controvérsias, como a posse de Mario Vargas LLosa, que sequer escreve em francês.
Mesmo no seu início, é difícil afirmar que a ABL era influente. Diogo Fontana, fundador e editor-chefe da Editora Danúbio, escritor, afirma que “a ABL nunca serviu para muita coisa. Foi sempre um espaço de homenagem e de reconhecimento pela obra. Como instrumento de fomento, nunca teve tanta força”.
Já Alexandre Sugamosto, Doutorando em Ciências da Religião pela PUC/MG, Especialista em Metodologia de Ensino da Língua Portuguesa e escritor, aponta diferenças entre o período inicial e o atual: “No final do século XIX, havia um um movimento literário mais robusto, visando colocar o Brasil no mapa da literatura mundial, mesmo que com uma roupagem regional”.
Decadência inevitável
Samo Burja, cientista político esloveno, é um estudioso das instituições e cuida de analisar como elas florescem, perduram e eventualmente morrem. A primeira frase de seu site pessoal, colocada aqui, soa até provocativa: “Nunca existiu uma sociedade imortal”.
Segundo o autor, as instituições, sejam elas a ABL ou o Supremo Tribunal Federal, são um tipo de tecnologia social. Ou seja, elas são meios que os homens dispõem para alcançar certo objetivo. E seu processo de decadência se dá sobretudo a partir de três motivos: sucessão, transmissão do conhecimento e corrupção das burocracias.
Alexandre Sugamosto reconhece a qualidade de alguns autores que hoje compõem a ABL, como Marco Lucchesi, Zuenir Ventura, Antonio Cícero e Ruy Castro, mas identifica o problema sucessório. “Este é o maior problema, na verdade. Essa geração é interessante. Mas quem poderia ser o sucessor de Ruy Castro?”, pergunta ele.
A ABL também não conversa com qualquer público leitor. Os vídeos do seu canal no Youtube não passam, em geral, de 500 visualizações, mesmo com conteúdos interessantes como “Luís de Camões - 500 anos”. “A atual composição da ABL reflete a decomposição da leitura. Nossa produção acadêmica não fala com o mundo. A crise da ABL é um sintoma disso”, diz Diogo Fontana.
A ausência de critérios mais claros para ocupar uma de suas cadeiras é temerário. “Quando há personalidades culturais, abre-se espaço para a politicagem”, diz Diogo Fontana. Estas “personalidades” são aquelas com evidente prestígio na sociedade, que transitam bem em seus corredores, não incomodando ninguém.
Ladeira abaixo
A última personalidade eleita para a Academia Brasileira de Letras foi Lilia Schwarcz. A antropóloga e historiadora é alinhada às pautas tradicionalmente defendidas pela esquerda. Schwarcz hoje ocupa a cadeira nº 9, anteriormente ocupada por Alberto da Costa e Silva, diplomata, poeta e historiador, vencedor do Prêmio Camões de 2014.
A respeito de perspectivas de mudança, Diogo Fontana lamenta: “A ABL só vai melhorar se a literatura renascer, com grandes escritores, candidatos a membros. Não há um gênio literário vivo, nem dentro nem fora”. Já Alexandre Sugamosto diz que o panorama vai piorar: “Não estamos vendo a decadência mesmo, vamos ver de fato em uns 10 anos. É só o começo dessa degradação”.
O site oficial apresenta um design obsoleto e a navegação é difícil. Parece propositalmente feito para afastar qualquer “mortal” dali de perto. Mas se um mortal mais persistente insistir, pode encontrar uma seção de artigos e ler um do ocupante da cadeira nº 31, Merval Pereira. O tema dificilmente dialoga com o princípio do artigo 1º: o caso Robinho. Custa acreditar que, com tanto interesse pelo transitório, a imortalidade da Academia dure tanto tempo.
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