A presença de termos vagos como “indícios concretos” e “comprovadamente injuriosa” em tese consolidada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) deve gerar autocensura aos veículos de imprensa, segundo especialistas. A Corte definiu o entendimento que os jornalistas serão responsabilizados pelas declarações de entrevistados, nesta quarta-feira (29). O mais provável é que os jornais evitarão a divulgação de conteúdos que possam prejudicá-los ou serão obrigados a fazer “investigações policiais” antes de uma publicação.
Segundo o STF, a regra geral implica que o próprio entrevistado deve ser responsabilizado por sua fala. Mas os jornais também poderão responder judicialmente em “casos excepcionais”, os quais não foram bem delimitados pela Corte. Para os ministros, os veículos poderão ser processados se “à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação” ou se não observaram “o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”.
“Indícios concretos já é contraditório em si. Se é indício, não é concreto. Se é concreto, não é indício”, comenta André Marsiglia, advogado constitucionalista. Ele complementa que “a própria visão do STF é quase pueril a respeito do que é o trabalho da imprensa”.
O mestre em Ciências Políticas e professor do Insper Fernando Schüler alerta que os dois critérios definidos pela Corte são subjetivos e geram insegurança à imprensa. “Há problemas históricos em relação à liberdade de expressão quando você a condiciona a critérios passíveis de múltiplas interpretações. Quem julgará se há cinco anos já havia informações disponíveis para que uma informação fosse contraditada e não fosse publicada?”, questiona.
O ex-ministro do STF Marco Aurélio Mello afirmou que a decisão atrapalha a atuação jornalística e “compele o jornal a fazer um verdadeiro inquérito do que é verdade ou não”. Antes de se aposentar, Marco Aurélio chegou a ser relator do caso, sendo contrário à responsabilização de jornais.
Critérios subjetivos geram autocensura
“Em uma entrevista polêmica, a tendência é que as pessoas não vão concordar se aquilo é verdade e não. E provavelmente haverá, no que foi dito, muita verdade e inverdade. Elas virão misturadas”, reforça Schüler.
O professor Schuler ressalta que, no mundo real, a informação é sempre imperfeita. “Imagina que para cada matéria você precise fazer uma super pesquisa investigativa. Os jornais são diários e trabalham com uma informação que também é sempre imperfeita”, diz.
Ele explica que há duas maneiras de lidar com essa imperfeição: ou você supõe que vai haver um controle sobre a verdade ou que vai haver o contraditório na sociedade e a crítica será feita por todos. E acrescenta que, historicamente, as democracias modernas se apoiam no amplo debate.
Marsiglia acredita que a decisão do STF pode gerar autocensura. “A regra fixada é impossível de ser aplicada. Então, é óbvio que os envolvidos preferirão, muitas vezes, não correr o risco. Isso significa que determinadas matérias, entrevistas e declarações vão deixar de ser divulgadas”, enfatiza.
Com a dificuldade para garantir que as informações não possuem inveracidades, haverá uma tendência que jornalistas reproduzam apenas as versões oficiais. Como acontece em países que são governados por ditadores. “A imprensa quando se expressa tem o direito – e até o dever – de fazer com que aquela informação circule e gere debate público”, considera Marsiglia.
Há instrumentos jurídicos suficientes para combater crimes contra a honra no Brasil
“As pessoas esquecem que, no Brasil, há uma legislação bem consolidada de crimes contra a honra. Qualquer pessoa que se sentir agredida por uma colocação ou entrevista tem o direito de abrir um processo por injúria, calúnia e difamação”, lembra Schüler. Os instrumentos jurídicos de proteção a honra são fundamentais para o exercício da liberdade de expressão, segundo o professor.
Schüler considera a decisão do Supremo uma “inovação jurídica” porque ao invés de processar apenas quem cometeu a injúria, agora também pode fazê-lo com os veículos de imprensa que divulgaram as informações que atentam contra a honra. “O resultado que isso vai produzir é um exercício de autocensura”, conclui.
A nova regra do STF deixa claro que a possível responsabilização dos jornalistas se dará na esfera cível. Mas, como aponta Marsiglia, os veículos podem se tornar alvos de processos criminais, se o jornalista concordar, reforçar ou destacar as ideias declaradas pelo entrevistado.
Responsabilização de big techs e de empresas de comunicação
A decisão do Supremo Tribunal Federal é semelhante ao entendimento que a Corte vem adotando desde 2019 ao julgar sobre a liberdade de expressão. O julgamento sobre a responsabilização das big techs referente a manifestações de seus usuários nas plataformas foi adiada pelo STF, mas vários ministros já se manifestaram favoravelmente.
O presidente do órgão, Luís Roberto Barroso, já defendeu publicamente que as plataformas devem ser penalizadas. O ministro Alexandre de Moraes também já disse que as redes sociais devem ser equiparadas a empresas de comunicação quando se trata da prestação de contas do conteúdo divulgado.
Marsiglia não concorda com a analogia entre big techs e veículos de imprensa feita por Moraes. “O usuário e a imprensa estão no mesmo balaio para o STF. Essa decisão mostra que o entendimento do STF é que quem se manifesta precisa ser limitado de uma forma mais rígida, mais severa e até mais agressiva”, finaliza.
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