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O Supremo Tribunal Federal (STF) tem colecionado decisões que deixam perplexos o povo, os especialistas em Direito Constitucional e, em alguns casos, até membros da própria Corte. A recente prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ) – consequência polêmica do já controverso inquérito das fake news – foi mais um caso que incomodou muitos juristas, assim como a anulação de processos do ex-presidente Lula pelo ministro Edson Fachin.
A coleção de decisões juridicamente questionáveis é tão extensa que, no fim de 2020, foi tema de um livro assinado por diversos juristas de renome. Em 16 capítulos, os especialistas destrincham as fragilidades das decisões tomadas em casos como o próprio inquérito das fakes news, a união homoafetiva, as pesquisas com células-tronco embrionárias, o aborto de anencéfalos e a criminalização da homofobia.
Por se tratar da corte máxima do Brasil, o impacto de decisões do tipo vai muito além dos casos específicos que motivaram os julgamentos. Até mesmo alguns opositores da direita brasileira têm feito o alerta de que, embora as decisões do STF nos casos de Silveira e Lula combatam, até agora, seus adversários, elas abrem precedente para um ataque também a seus correligionários.
Por outro lado, ainda que inaugurem precedentes que servem para todas as cortes do país, as decisões não são imutáveis. Elas tendem a ser duradouras, mas podem ser revistas tanto por emendas à Constituição quanto por um mecanismo chamado “viragem jurisprudencial”.
O que é a viragem jurisprudencial e como ela já foi usada no STF
Rafael de Lazari, doutor em Direito Constitucional pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), explica que a viragem jurisprudencial ocorre quando a Corte muda o seu próprio entendimento sobre determinado assunto. Obviamente, como destaca Lazari, “só o Supremo pode mudar o entendimento do Supremo”.
Foi o que aconteceu no vaivém judicial sobre a prisão em segunda instância. Antes da decisão de 2019, que derrubou a possibilidade de prisão em segunda instância, o Supremo já havia analisado o mesmo assunto em 1991 e em 2009, com entendimentos diferentes.
“Os tempos mudam, as composições da Corte mudam. Então pode ser que, em certo momento, nós tenhamos juízes mais pró-liberdade. A tendência, nesse caso, é que a coisa dê uma relaxada. Há momentos em que há um endurecimento”, afirma Lazari.
Ele considera, no entanto, que essas revisões no entendimento do passado dependem de uma mudança significativa na composição da Corte. A chance de que uma mesma composição da Corte reveja suas próprias decisões é bastante remota. “Seria improvável, porque é uma coisa que mexe com a credibilidade. Quando você muda um entendimento que você mesmo chancelou, você joga em uma zona de incerteza jurídica”, opina.
Em relação ao precedente aberto no caso de Daniel Silveira, portanto, é provável que a decisão seja mantida por muitos anos, apesar de sua fragilidade jurídica. “A atual composição da Corte chancelou a prisão do Daniel Silveira. Então, eu acho improvável que, neste momento e nesta atual composição, a decisão seja revista. A minha dúvida é: quando for outro parlamentar, o precedente vai servir, ou eles vão criar outro precedente?”, questiona Lazari.
Para uma mudança radical na composição da Corte, que converta em minoria o viés da atual composição, seria necessária cerca de uma década de indicações de ministros com outro tipo de viés para as vagas que surgirem nos próximos anos.
Mudança também pode ocorrer pelo caminho legislativo
Outra via de mudança de decisão do STF, que tende a ter um impacto mais permanente, é a ação do Poder Legislativo por meio de emendas à Constituição e projetos de lei. “É uma coisa que pode acontecer: como o Supremo está agindo em excesso, o legislador vai em sentido contrário à decisão do Supremo Tribunal Federal, como forma de desconstituir a decisão”, explica Lazari.
Meses depois da decisão do STF sobre a prisão em segunda instância, a Câmara já discutia uma proposta de emenda à Constituição (PEC) que derrubaria o entendimento da Corte. A PEC ainda está em tramitação na Casa e, em fevereiro, o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), disse que não vai barrá-la.
Depois da decisão sobre o deputado Daniel Silveira, parlamentares também elaboraram uma PEC para reagir ao entendimento do STF no caso. A proposta prevê aumentar o alcance da imunidade parlamentar, estabelecendo elementos que dificultavam a prisão de deputados federais e senadores.
Retaliações a decisões do STF por meio de projetos de lei também têm sido comuns em temas relacionados a costumes julgados pela Corte. Em abril de 2020, por exemplo, depois que o STF decretou inconstitucional uma lei municipal que proibia o ensino de ideologia de gênero nas escolas, o presidente Jair Bolsonaro prometeu levar ao Congresso um projeto federal sobre o assunto. Uma promessa idêntica já havia sido feita em 2019, mas, até agora, a ideia não foi levada à frente.