Decisões do Poder Judiciário e do Executivo estão facilitando a expansão do narcotráfico no Brasil. Diversas medidas recentes agravam o temor de que o país esteja se tornando um narcoestado, em que a omissão ou colaboração do poder instituído permite ao crime organizado constituir um poder paralelo e penetrar nas estruturas estatais.
O julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) da descriminalização das drogas, que deve ser retomado nos próximos dias, pode ser mais um passo nesse sentido. O aumento do tráfico de drogas é uma consequência esperada em caso de vitória do voto até agora majoritário, em favor da descriminalização.
Essa pode ser mais uma das diversas medidas judiciais recentes que facilitam a vida de traficantes. Tanto o STF como o Superior Tribunal de Justiça (STJ) têm emitido uma série de decisões favoráveis aos criminosos, anulando, por exemplo, provas evidentes de crimes cometidos por traficantes.
Recentemente, o STF liberou dois traficantes que carregavam 695 quilos de cocaína encontrados pela Polícia Federal (PF) no Porto de Itaguaí, no Rio de Janeiro, porque os policiais teriam entrado no local sem um mandado de busca e apreensão. O STJ, por sua vez, absolveu em maio um homem condenado por tráfico de drogas porque ele teria confessado o crime sob "estresse policial".
Em abril, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) apresentou ao STF um relatório recomendando restrições a operações policiais nas favelas, no âmbito da ADPF 635, conhecida como "ADPF das Favelas".
Desde 2020, decisões do STF que restringiram operações policiais em favelas e vedaram o uso de helicópteros têm resultado em aumento do poderio do crime organizado nas favelas cariocas.
"Hoje, o Supremo Tribunal Federal atende a todas as demandas do tráfico de drogas. É isso o que o Supremo faz objetivamente. Eu não estou dizendo que eles atendem porque eles querem atender, porque eles estão em conluio com o tráfico. Eles podem ter as melhores intenções – aí eu já não sei, não posso ler a mente dos ministros. Mas o que eu estou dizendo é que, do ponto de vista objetivo – não da intenção deles, mas do ponto de vista objetivo –, o Supremo atende a todas as demandas do crime organizado, em especial do tráfico", afirma Marcelo Rocha Monteiro, procurador de Justiça do Ministério Público do Rio de Janeiro (MPRJ).
Decisões do Judiciário contribuem para enquadrar Brasil em definição de narcoestado
Uma das decisões recentes mais negativas do Judiciário, segundo Monteiro, foi a da restrição do uso de helicópteros pela polícia. "Na geografia do Rio, em geral, o criminoso está no alto de um morro, em posição de superioridade com relação à polícia. O helicóptero quebra isso, e quem passa a ter posição de superioridade é a polícia. O helicóptero é um tremendo reforço para a atividade policial e um tremendo prejuízo para o tráfico. O que o Supremo faz? Proíbe, restringe, dificulta a realização de operações policiais de helicóptero", critica.
Eduardo Matos de Alencar, doutor em sociologia pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), autor do livro De quem é o Comando? O desafio de governar uma prisão no Brasil? (Record, 2019), afirma que a expressão "narcoestado" pode ser usada "para definir uma situação institucional em que o Estado está rendido para grupos criminosos".
"Geralmente são facções ligadas ao narcotráfico, grandes cartéis ligados ao narcotráfico, que começam a influenciar diretamente o arranjo político-funcional do Estado. Tráfico de drogas e crime organizado existem em qualquer lugar do mundo. O que separa uma situação normal, uma democracia normal, de uma democracia que está deixando de ser democracia para se transformar em outra coisa, sob influência do crime organizado, é quando essa influência começa a permear as instituições – e principalmente as instituições não só no andar de baixo, da administração policial, municipal, etc., mas também a cúpula do Legislativo, do Executivo e do Judiciário", explica.
Essa influência, segundo ele, pode se dar sob um ponto de vista mais explícito, como no caso da Colômbia sob o poderio do traficante Pablo Escobar (1949-1993), ou com envolvimento mais discreto, como no caso da Venezuela, em que militares de alto escalão estão envolvidos com o narcotráfico.
No caso do Brasil, segundo ele, o que se vê é "um acúmulo de decisões, principalmente das altas instâncias do Poder Judiciário, que têm favorecido a atuação do crime e de grupos criminosos". Embora não haja um envolvimento explícito do Judiciário ou do Executivo com o narcotráfico, há uma combinação de leniência com o crime organizado e indícios de relação promíscua dos traficantes com o poder público.
"Não tenho evidência suficiente para falar que há um envolvimento direto dos juízes ou das instâncias mais altas com o crime organizado, mas o que temos visto são sucessivas decisões que dificultam demais o trabalho da polícia na ponta. E, agora, na votação sobre a descriminalização do porte de drogas, há mudanças de posições que são, no mínimo, bastante intrigantes. O ministro Alexandre Moraes, quando era secretário de Segurança Pública de São Paulo, tinha posições diametralmente opostas; depois, quando foi ministro da Justiça, também tinha posições diametralmente opostas, com um discurso de guerra às drogas – até apareceu em vídeo cortando pé de maconha em plantações que foram destruídas pela Polícia Federal. E, de repente, ele aparece citando um discurso pró-legalização, que aponta para a legalização em todos os sentidos possíveis – não só a descriminalização do porte de droga", comenta.
Para o jurista Fabricio Rebelo, coordenador do Centro de Pesquisa em Direito e Segurança (Cepedes), há uma leniência com o tráfico no Brasil que é fruto "da prevalência exagerada do chamado 'garantismo penal'", que, tomado em seu extremo, "parte do pressuposto de que toda punição estatal é opressora e violadora das liberdades do indivíduo".
"Como nossa Constituição consagra a garantia do 'devido processo legal', acabaram deturpando aquela ideia e transformando o Direito Penal em um conjunto de regras para assegurar direitos aos criminosos, e não para proteger a sociedade. É um movimento essencialmente ideológico, mas não se pode descartar que existam já decisões motivadas por interesses escusos, inclusive diante da notória ocupação de cargos públicos por indivíduos vinculados a organizações criminosas", diz Rebelo.
Sobre suspeitas concretas de envolvimento de juízes da alta cúpula com o tráfico, Alencar recorda o caso do ex-ministro do STJ Vicente Leal, que foi investigado por suposto envolvimento com traficantes de drogas na Operação Diamante, da Polícia Federal. Em 2004, por causa das investigações, Leal pediu sua aposentadoria do STJ.
Além disso, em tribunais inferiores, os sinais de que o narcotráfico mantém vínculos com a Justiça é mais evidente. Notícias de venda de sentenças judiciais para criminosos são frequentes.
Em março de 2023, por exemplo, o desembargador federal Cândido Ribeiro, do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF-1), foi alvo da Operação Habeas Pater, da Polícia Federal, por suspeita de vender sentenças judiciais a traficantes. Ele se aposentou por invalidez em maio.
Rebelo recorda que "têm sido cada vez mais comuns notícias de que grandes organizações criminosas estão investindo na formação de profissionais para ingressar em carreiras públicas representando seus interesses, seja na polícia, no Judiciário ou no Ministério Público, e é natural que isso chegue à política". "Não é algo conspiratório, mas absolutamente plausível e até provável", observa.
Executivo embarca em discurso antipolícia que incentiva narcotráfico
No Poder Executivo, as propostas de políticas para segurança pública e o discurso do presidente Lula e do ministro da Justiça, Flávio Dino, deixam clara uma tendência de vilanização das forças policiais, o que pode contribuir para a consolidação de um narcoestado.
Exemplo disso é o relatório elogiado por Dino da ONG Redes da Maré, que teria sido aproveitado na elaboração do Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania (Pronasci).
"Esse relatório chega à conclusão de que o grande problema da segurança pública para os moradores do complexo de favelas da Maré é a polícia. Em nenhuma das dezenas de páginas você vai encontrar a palavra 'traficante'. Você não vai encontrar referência à realidade das escolas públicas dentro da Maré. Elas hoje são depósitos de munição, de armas, de drogas e, mais recentemente, esconderijo de traficantes de outros estados que vêm aqui para o Rio porque já sabem, já conhecem essa situação causada pela decisão do Supremo no Rio, que se transformou numa espécie de porto seguro. As crianças convivem nas escolas com armas, com drogas, com munição e com criminosos escondidos. Não há nenhuma menção a isso no relatório. Não há nenhuma menção ao fato de que, por exemplo, no posto de saúde dentro dessa comunidade, o morador idoso que esteja com uma crise de hipertensão ou qualquer outra coisa, não pode ser atendido antes do traficante. Se houver um traficante ferido no confronto com a polícia, os profissionais de saúde são obrigados a dar preferência a ele. Tudo isso é ignorado. Tudo isso é conhecido por quem trabalha com segurança pública, e tudo isso é ignorado por essa ONG nesse relatório absolutamente distorcido, absolutamente falso. O ministro da Justiça comparece ao lançamento desse relatório, tira foto segurando o relatório e diz: 'este relatório é muito importante e servirá de parâmetro para a política de segurança pública do nosso governo'. Então, se o parâmetro é esse, nós estamos perdidos", comenta Monteiro.
Para Rebelo, a associação ideológica entre esquerda e narcotráfico "é histórica e tem procedência". A visão da esquerda sobre as drogas, observa ele, "é muito mais permissiva e leniente" do que a da direita, que a entende como um problema social grave, capaz de desestruturar a sociedade.
"Como a esquerda se favorece dessa desestruturação, é natural que adote medidas no sentido de favorecer o aumento do consumo de entorpecentes e, consequentemente, do poderio de quem se dedica a sua produção e comércio, sempre usando como subterfúgio a defesa da liberdade individual. Isso impacta diretamente o macrossistema de segurança pública, no qual não apenas ações concretas são influentes, mas também a postura do governo para com o crime. Se há a sensação de que o governo é tolerante com o crime, a tendência é que os criminosos se sintam mais estimulados a atuar, como se vissem uma verdadeira proteção para o que fazem", afirma o especialista.
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