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Cenas abertas de uso de drogas, aumento de furtos e roubos, decadência urbana, depredação de prédios e da infraestrutura pública e crescimento da população de rua são alguns dos efeitos da incompetência histórica do poder estatal em combater a disseminação das drogas nas ruas de São Paulo.
As mazelas sociais geradas pela dependência química nas ruas da capital paulista, especialmente no centro da cidade, são um dos principais desafios do governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) para os próximos anos. Sua gestão, em parceria com a Prefeitura da capital, tem proposto romper com o discurso ideológico que impediu, por muitas décadas, um debate franco e integral sobre o problema.
A principal ideia é não renegar nenhuma das pernas do tripé do combate às drogas, abordando a questão como um problema social, de saúde e, também, policial.
"O discurso que busca tratar o problema com ações só na área de saúde e de assistência social não faz o menor sentido. Faz parte desse cenário o narcotráfico, o crime organizado. Não é possível abordar uma solução para um problema dessa magnitude, de cenas abertas do uso de drogas, sem a ação conjunta com as forças policiais. A ação da polícia é fundamental para dar conta desses problemas todos", afirma o psiquiatra Quirino Cordeiro, especialista em Psiquiatria Forense e diretor do recém-inaugurado Hub de Cuidados em Crack e outras Drogas, ação do Governo de São Paulo em parceria com a Prefeitura.
Nos três primeiros meses de funcionamento, a iniciativa comandada por Cordeiro encaminhou 1.239 dependentes químicos para hospitais especializados e 928 para comunidades terapêuticas. O hub tem 38 leitos, mas seu principal propósito é funcionar como um lugar de triagem antes do acesso ao tratamento nos hospitais e nas comunidades.
Para isso, a iniciativa conta com a retaguarda de 11 hospitais e 38 comunidades terapêuticas já preparadas para receber esses pacientes. Trata-se de uma das principais apostas do governo Tarcísio para enfrentar um problema cuja escalada nos últimos anos é evidente.
Questão policial não pode ficar de fora na equação da Cracolândia, dizem especialistas
Na semana passada, meios de transporte públicos foram depredados no centro da cidade por usuários de drogas da Cracolândia. Pelo menos seis ônibus e um caminhão de coleta de lixo foram danificados.
Cenas desse tipo ocorrem há décadas na maior cidade do país, e uma sucessão de políticas fracassadas durante esse tempo não foi capaz de fazer frente ao problema. Nos últimos anos, a degradação social causada pela dependência química só se intensificou.
"São Paulo realmente vem sofrendo muito com a questão das drogas, principalmente com o crack. A situação é semelhante com a que passou Nova York nos anos 1980, e lá eles conseguiram vencer principalmente por causa do programa Tolerância Zero e outras leis que atacavam efetivamente a disseminação da droga", diz o especialista em segurança pública Davidson Abreu, oficial da Polícia Militar de São Paulo (PM-SP).
Para ele, houve várias políticas públicas equivocadas ao longo da história que conduziram a situação ao atual estágio. Ele cita como exemplo de fracasso o programa "De Braços Abertos", do ex-prefeito Fernando Haddad (PT), que prometia oferecer "teto, tratamento e trabalho".
O atual governo, segundo Abreu, tem se preocupado em buscar uma solução global do problema, ao não deixar de investir em ações sociais mas também colocar o foco em policiamento ostensivo e investigativo, sufocando o tráfico. "O plano do Tarcísio e do [atual] secretário de Segurança Pública [Guilherme Derrite] e de sua equipe foca bem no aspecto de que você tem que atacar de todos os lados", diz.
O psiquiatra Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), afirma que até mesmo dependentes químicos de crack podem se recuperar, mas que parte da solução está justamente em criar dificuldades sociais para o uso da droga – o que inclui, sempre que necessária, a ação policial.
"É necessário um tratamento psiquiátrico estruturado, com uma equipe multiprofissional, em que se analisa toda a parte social da vida da pessoa, a estrutura familiar – quando ainda existe –, também a parte psicológica, com toda a formação psíquica da pessoa, para conseguir obter resultados. Isso é de alta complexidade, não é algo feito de maneira solta. É como alta costura, um plano de trabalho muito individual", explica.
Sobre psiquiatras que veem na ação policial um empecilho ao tratamento, Silva diz que isso parece "um discurso em benefício próprio", uma vez que a falta de restrições a drogas faz multiplicar o número de pacientes nas clínicas psiquiátricas. "É claro que a repressão é parte do contexto do que se faz necessário. A partir do momento em que você cria áreas livres para uso e comércio de drogas, você facilita [a dependência química]. Com as drogas, nós temos que criar restrições, dificuldades. Há um conjunto de ações necessárias para que as coisas aconteçam e tenhamos resultados. Essa restrição é importante. A facilitação é o fim. Não podemos facilitar", afirma.
Para o presidente da ABP, as políticas públicas antidrogas que tratam a redução de danos (leia mais sobre o tema aqui) como um fim em si mesmo não beneficiam a abstenção das drogas. "Nós podemos usar do meio para chegar ao fim, mas o que a gente quer é o fim. É o não uso dessas substâncias. É isso o que nós queremos. No Brasil, com essa história de 'redução de danos', o que era para ser um meio passou a ser um fim. Se eu, psiquiatra, em algum momento, defender isso, eu estou legislando em causa própria, porque eu estou fazendo com que apareçam doentes mentais, e eu vou ganhar dinheiro com isso. É um absurdo quando um médico faz esse tipo de colocação."
Furtos aumentam e população de rua cresce por causa das drogas
Uma das facetas do colapso social relacionado à dependência química é o aumento de furtos nos últimos anos e o crescimento da população em situação de rua na capital – dois fenômenos que, para especialistas consultados pela Gazeta do Povo, não podem ser dissociados do aumento do uso de drogas.
Segundo a Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo, a capital paulista teve 21,9% mais furtos que no primeiro bimestre de 2023 em comparação com o mesmo período de 2022, ano que já tinha registrado aumento nessa estatística não só com relação a 2021 e 2020 – anos da pandemia –, mas também em comparação com 2019.
O problema também atinge regiões nobres da cidade. De acordo com um levantamento feito pelo jornal O Estado de S. Paulo em abril deste ano com dados da Secretaria de Segurança Pública (SSP), a avenida Paulista teve, em 2022, o maior número de roubos dos últimos dez anos e o segundo maior registro de furtos da mesma série histórica.
A capital tem, além disso, dez vezes mais famílias em situação de rua registradas pelo governo do que há dez anos, de acordo com dados da Secretaria de Avaliação, Gestão da Informação e Cadastro Único (SAGICAD). Em abril de 2013, havia 4.674 famílias registradas; em abril deste ano, eram 49.379.
Quirino Cordeiro diz que existe uma relação cientificamente comprovada entre o aumento do uso de drogas e o crescimento da população de rua – e que, na maioria dos casos, é a dependência química que leva pessoas às ruas, e não o contrário.
"O primeiro fato é que existe uma relação direta entre o aumento de pessoas em situação de rua e o aumento do uso de drogas. Aí vai existir o debate: o que vem depois e o que vem antes? A pessoa começa a usar drogas e vai para rua, ou a pessoa vai para a rua e começa a se envolver com drogas? As duas coisas podem acontecer. Mas a pesquisa Lecuca [Levantamento de Cenas de Uso em Capitais], publicada [em 2022] pela Unifesp, mostra de maneira bastante clara que, na maioria dos casos, o uso das drogas precede a ida da pessoa para a rua. A pessoa começa a usar droga, começa a sofrer uma série de problemas, a perder suporte familiar, suporte social, acaba não conseguindo trabalhar mais, perdendo emprego e, para se manter, vai para a rua", explica o especialista.
Além do crescimento do número de moradores de rua e do aumento da criminalidade, o uso de drogas tem provocado, em lugares como o centro da cidade, depredação e abandono de prédios e infraestrutura, deslocamento de residentes e negócios e desvalorização imobiliária por conta da diminuição da segurança percebida.
Novas drogas, como o K9, aumentam o tamanho do desafio
Enquanto o discurso ideológico e a inércia estatal facilitaram a escalada dos problemas sociais relacionados à dependência química na capital paulista, o mercado das drogas não ficou parado e criou novas frentes de negócio.
Atualmente, segundo Quirino Cordeiro, cerca de 15% dos pacientes que chegam ao Hub de Cuidados em Crack e outras Drogas são usuários das novas drogas sintéticas, como o K9 e outras drogas da família K.
"As drogas K têm em comum que todas elas atuam nos mesmos receptores, nas mesmas áreas cerebrais onde atua a maconha natural, porém com a diferença de que essas drogas sintéticas, as canabinoides sintéticas, têm uma ação muito mais contundente do que a maconha natural, até 100 vezes maior. Há grande chance de causar dependência em quem usa, além de problemas psiquiátricos numa magnitude muito maior quando se compara com a maconha natural. Há, por exemplo, chances de psicose 30 vezes maior quando comparamos com maconha natural. E, diferente da maconha natural, podem inclusive causar morte, por overdose", explica o especialista.
Reportagem recente da Gazeta do Povo revela como essas drogas estão se espalhando pela cidade de São Paulo. O número de casos de intoxicação por canabinoides sintéticos dobrou entre 2022 e 2023.
"Estamos diante de um cenário que pode ser bastante desafiador para os próximos tempos", avalia Cordeiro.