Após o governo federal decretar estado de emergência para combater a falta de assistência sanitária que atinge os indígenas da etnia Yanomami, no estado de Roraima, uma série de críticas foram direcionadas à gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro. Procurados pela Gazeta do Povo, ex-integrantes da Funai e Sesai atribuem o fato de não terem conseguido resolver a situação de crise humanitária, que existe há décadas, pelas dificuldades de acesso para ir até as aldeias, pelas circunstâncias dessas tribos específicas e também pela chegada de outros yanomami vindos da Venezuela.
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As denúncias e os registros de casos de desnutrição e doenças contagiosas em aldeias somam mais de 30 anos, conforme relatórios publicados por diversas ONGs, como o Instituto Socioambiental (ISA), e compilados pelos ex-funcionários da Funai. Inclusive, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) da Subnutrição de Crianças Indígenas foi instalada no ano de 2007, na Câmara dos Deputados, para investigar as mortes de crianças indígenas por subnutrição no país.
No último sábado (21), ao visitar o território Yanomami, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva acusou o governo Bolsonaro de crimes contra os indígenas. “Mais que uma crise humanitária, o que vi em Roraima foi um genocídio. Um crime premeditado contra os Yanomami, cometido por um governo insensível ao sofrimento do povo brasileiro”, disse Lula.
O Ministério dos Povos Indígenas informou que 99 crianças de 1 a 4 anos morreram, apenas em 2022, dentro da tribo Yanomami. No ano passado, segundo o ministério, ainda houve notificação de 11.530 casos de malária no território, e estima-se que nos últimos quatro anos ao menos 570 crianças foram mortas pela contaminação por mercúrio, desnutrição e fome, um aumento de 29% em relação ao período anterior.
O governo petista também atribuiu a crise humanitária nas aldeias ao "avanço avassalador" dos garimpos nos últimos anos, o qual estaria relacionado a política do governo Bolsonaro. Dados do relatório "Yanomami sob ataque", feito por associações indígenas e publicado pelo Instituto Socioambiental (ISA), registraram um salto de 46% do garimpo ilegal no território entre 2020 e 2021.
Em nota divulgada nesta segunda-feira (23), o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) informou que o atual governo testemunhou os impactos que o garimpo ilegal e o abandono no atendimento à saúde por parte do Estado ocasionaram ao povo Yanomami. "Não é uma situação revelada agora; foi denunciada inúmeras vezes por organizações indígenas e aliados. Entre novembro de 2018 e dezembro de 2022, houve até seis decisões judiciais, nas diversas instâncias do Poder Judiciário, condenando ao Estado a tomar as medidas urgentes necessárias", explicou o conselho.
Segundo o Cimi, "o problema da fome entre os índios começou quando eles foram tirados de seus territórios originais para a expansão da agricultura em latifúndios. Isso desorganizou a economia de partilha, base das aldeias indígenas, e os deixou sem terras onde produzir alimentos".
Após as acusações, tanto o ex-presidente como a ex-ministra dos Direitos Humanos Damares Alves se manifestaram sobre o caso. Bolsonaro classificou a denúncia como uma “farsa da esquerda”, disse que cuidados com a saúde indígena foram uma das prioridades do seu governo e listou ações prestadas aos povos indígenas durante seu mandato.
Já a ex-ministra Damares afirmou que acompanha com tristeza as imagens que estão sendo divulgadas sobre os Yanomami, mas que não houve omissão do seu ministério, nem de outras áreas do governo. Disse, ainda, que a desnutrição entre crianças indígenas é um “dilema histórico agravado pelo isolamento imposto pela pandemia” e que também houve mortes de indígenas por desnutrição em gestões petistas.
Negligência das gestões anteriores
O fracasso de políticas públicas para resolver a situação de miséria dos Yanomami não é somente da última gestão. Desde 1991, a "situação caótica" dos Yanomami vem sendo documentada pelo Instituto Socioambiental (ISA). No Acervo ISA, consta uma “cronologia do genocídio” enfrentado nos territórios dessa etnia, o qual apontou “uma saúde em estado grave com yanomami morrendo de malária, desnutrição e doenças associadas”.
Em 1999, o índice de mortalidade infantil entre os yanomami era também alarmante: 141 mortes por mil pessoas, dez vezes maior que os números registrados em grupos atendidos pela Pastoral da Criança, que é de 13,7 óbitos por mil.
A morosidade e desarticulação do poder público em controlar a invasão de garimpeiros e a saúde indígena também foram alguns dos pontos críticos das últimas gestões apontados pelo ISA. Em 2000, a Polícia Federal fez uma denúncia dizendo que faltavam pessoas e dinheiro para o processo de fiscalização nas reservas indígenas.
Um estudo publicado no Deutsche Welle, no ano de 2018, denunciou uma "epidemia de garimpos na Amazônia". Segundo o levantamento, a Venezuela era o país onde a situação estava mais grave, com 1.899 garimpos ilegais. O Brasil apareceu em segundo do ranking, com 453, sendo 321 pontos, e 132 áreas.
No ano de 2004, o ISA destacou o “retrocesso na política de atendimento à saúde indígena” e relembrou “as frustrações dos povos indígenas no primeiro governo de Lula”. O alto índice de desnutrição também foi bastante criticado em governos anteriores.
Em 2007, foi instalada na Câmara dos Deputados a CPI da Desnutrição Indígena, que investigou as mortes de crianças indígenas por subnutrição durante o período de 2005-2007. Em uma das audiências realizada em 2008, foi mencionado que "os Yanomami estavam morrendo de malária, sofrendo de complicações oculares da oncocercose, de toxoplasmose", mas não estavam recebendo a devida atenção. Também foi apontado a dificuldade de acesso às aldeias para prestação de socorro.
O relatório da CPI, elaborado pelo ex-deputado Vicentinho Alves (PR-TO), recomendou a extinção dos convênios com organizações não governamentais para tratar da saúde indígena e o fortalecimento da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e Funai. Segundo o relatório, houve um "descontrole" na saúde indígena e uma "ineficácia do controle interno" da fundação.
Dificuldade de acesso precariza saúde Indígena
A deputada eleita Sílvia Waiãpi (PL-AP), que foi secretária da Saúde Indígena no primeiro ano do governo Bolsonaro até início de 2020, disse que a "situação caótica" nas tribos yanomami preocupa, mas ressaltou que "associar esse problema ao governo Bolsonaro é a única forma de esconder a omissão dos governos passados".
A deputada disse que acompanhou de perto a realidade do atendimento aos indígenas em postos de saúde, e sofreu ameaças por mexer com "poderosos que utilizavam contratos na ponta na área da saúde pra desviar o dinheiro público". Além da corrupção, ela ressaltou que a dificuldade de acesso as aldeias também compromete o atendimento e a assistência aos índios.
Além da falta de equipamentos, médicos, enfermeiros, medicamentos, Sílvia mencionou que as pistas de pouso para emergência nas aldeias nunca haviam sido homologadas, o que dificultava a realização de ações humanitárias e a remoção emergencial de pacientes.
"O governo Bolsonaro, para garantir assistência de saúde, homologou as pistas de pouso para melhorar o acesso a essas regiões e para levar atendimento aos indígenas. Isso foi algo que nenhum outro governo fez", explicou a parlamentar.
De acordo com a Agência Nacional de Aviação Civil (Anac), 135 pistas de áreas indígenas estão cadastradas. Destas, no entanto, 112 têm restrições para pousos e decolagens por não terem um Plano Básico de Proteção do Aeródromo que indique condições topográficas da pista para evitar o choque das aeronaves com árvores ou morros. Técnicos da Sesai garantem que outras 74 pistas nem sequer possuem registro e por isso não citadas pela Anac.
Outra preocupação apontada pela deputada, foi em relação a fronteira próxima com a Venezuela no território dos Yanomamis, que facilita a entrada de indígenas venezuelanos que vem ao Brasil em busca de atendimento de saúde e comida.
"No posto de saúde em Auaris, na região dos Yanomami, identificamos que muitos indígenas vinham de território venezuelano em busca de alimento e assistência. O Brasil é o único país com política de assistência aos povos indígenas. Na época pedi para levantar todos os nomes e fluxos de indígenas venezuelanos que iam ao posto pedir ajuda", disse.
O relatório dos nomes dos pacientes atendidos não foi tornado público na internet. Segundo a deputada, as fichas e relatos podem ser encontrados no polo de atendimento Auari no batalhão do Exército.
A deputada também criticou a "segregação" e as ONGs que prestam assistência aos povos indígenas. Segundo Sílvia, "existem muitas ONGs naquele lugar que exploram um dos poucos alimentos" que os Yanomami têm e dificulta o crescimento e protagonismo das aldeias.
"Temos que saber como o dinheiro que vai para as ONGs está sendo usado, nada mudou, pelo contrário, só conflito atrás de conflito, como esse problema humanitário dos Yanomami. A segregação condena povos. Segregamos indígenas e impedimos o acesso e o contato com esses povos”, disse.
Gestão Bolsonaro
Na gestão Bolsonaro, as políticas públicas voltadas aos índios ficou a cargo da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), vinculada ao Ministério da Saúde. A Fundação Nacional do Índio (Funai) tinha o papel de monitorar as ações e serviços de atenção à saúde indígena, porém a oferta e execução dos trabalhos eram de responsabilidade da Sesai.
A Funai procurou dar transparência ao que vinha sendo feito pelo governo Bolsonaro nas aldeias dos Yanomami em Roraima, inclusive com um relatório publicado em 2022. Segundo informações da Funai, até outubro do ano passado, foram entregues mais de 22 toneladas de alimentos aos yanomami e somente na pandemia, o número de cestas ultrapassou mais de 1 milhão. A ação do governo contemplou as comunidades indígenas das regiões de Parima, Kayanaú, Parafuri, Xitei, Hakoma, Homoxi, Haxiu e Surucucu.
Um último levantamento divulgado pela Funai no final do ano passado, mostrou que a verba para fiscalização de terras indígenas cresceu 151% durante 3 anos, o desmatamento no local caiu 26,79% no período e o investimento na proteção de indígenas isolados e de recente contato mais que triplicou.
Ao longo de 2021 e de 2022, a Funai participou de articulações interinstitucionais para o acompanhamento do Plano de Ação Emergencial para o enfrentamento da malária, desnutrição infantil, mortalidade infantil. O planejamento envolvia ações relacionadas à insegurança alimentar de curto, médio e longo prazo, junto à Secretaria Especial de Saúde Indígena e Ministério da Cidadania com foco especial no combate à desnutrição.
Sobre o impacto dos garimpos na vida dos yanomamis, o ex-presidente da Funai, Marcelo Xavier, apresentou uma série de ações que foram feitas no governo Bolsonaro para conter a grilagem e até operações do Exército, como a Curare 11, para combater o garimpo ilegal. Uma das ações indicadas por Xavier foi a reabertura das bases de proteção etnoambiental (Bape) da Terra Indígena (TI) em 2019, após quatro anos fechadas, que colaborou no combate ao imenso garimpo ilegal.
Segundo a Funai, a exploração devastadora dos minérios, além de levar à contaminação dos indígenas por mercúrio, ter assoreado e poluído rios e destruído parte da floresta, trouxe fortes interferências no modo de vida das comunidades, ocasionando a desorganização social, transmitindo doenças e colocando a população em situação de vulnerabilidade.
De 2019 a 2021, a Funai realizou mais de 1.200 ações e foi constatada uma redução de 22,75% no desmatamento em Terras Indígenas da Amazônia Legal. Em junho do ano passado, militares venezuelanos foram presos no território yanomami com mais de 30kg de mercúrio, que seria comercializado em área de garimpo ilegal. "A Funai manteve uma atuação intensa na repressão a crimes que ocorrem naquela região, de forma articulada e integrada", disse Xavier.
De acordo com o "Relatório Yanomami - Funai 2022", existem no território em Roraima 27 mil indígenas dessa etnia, distribuídos em cerca de 360 comunidades, e estima-se que cerca de 10 mil Yanomami vivem na República Bolivariana da Venezuela.
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