O líder comunitário do Xapinhal Sebastião Maria de Oliveira na Rua Marte, centro comercial local.| Foto: Brunno Covello/Gazeta do Povo

Março, abril e maio de 2015 devem figurar com honras de estado nas páginas da história da Companhia de Habitação de Curitiba, a Cohab-CT. Nos dois últimos meses, o órgão concluiu a regularização fundiária de três áreas. E áreas conhecidas por hastearam as mais altas bandeiras da luta pelo direito à habitação na capital paranaense – as vilas 23 de Agosto, Campo Cerrado e Xapinhal. As duas primeiras ficam nas cercanias do Ganchinho e do Umbará; a terceira num ponto extremo do grande Sítio Cercado.

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Trata-se de um feito estatístico. Juntas, as três comunidades contabilizam 2.905 famílias, perto de 11 mil pessoas – e equivalem a 20% das unidades de regularização fundiária no município. É uma “pernada” em se tratando de um setor que desenvolve-se às passadinhas. E de um avanço social: 4,6 mil pessoas estão sendo beneficiadas pela conclusão desse processo que se arrasta por 24 anos, formando um dos mais conhecidos fios desencapados do setor de moradia da capital. “São áreas emblemáticas”, reconhece Melissa Cunha, gerente do Departamento de Arquitetura e Regularização Fundiária da Cohab-CT.

Energia

Regularizações exigem nervos de aço. Consomem décadas de energia. São pródigas em gerar mais mártires do que heróis. É preciso enfrentar inventários, formar condomínios e lidar com ingerências partidárias. No meio do caminho, associações de moradores podem abrir fogo, os recursos minguarem ou se descobrir uma imposição ambiental até então desconsiderada. Se não for o bastante, a burocracia pode se esmerar para piorar o quadro – e costuma fazê-lo sem pudores.

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Não raro, o tempo de espera até as escrituras saírem do forno costuma provocar estragos profundos. É o bastante para que os analistas considerem diabólica a equação que virou regra na década de 1980: “primeiro ocupação, depois regularização”. No longo intervalo entre uma ação e outra, pipocam oportunidades tentadoras para que o tráfico, as milícias, a informalidade e os estigmas ganhem terreno.

“Uma nova ocupação, perto da que já existia, tende a atropelar a regularização”, ilustra Melissa, sobre um expediente bastante comum – a chegada de novos moradores em áreas já em processo. Nesses casos, orçamentos viram um cobertor curto. Não é o único problema: em se tratando de ocupação de uma propriedade particular, o tempo de resolução do impasse beira o infinito.

As miudezas são tão infernais quanto. “Pode-se levar um ano para chegar a um consenso sobre a largura de uma rua. Não é bobagem. Uma regularização tem de obedecer às lógicas da cidade. Além do mais, cada área é única, tem seus próprios desafios”, observa a arquiteta da Cohab.

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As vilas 23 de Agosto, Campo Cerrado e Xapinhal não passaram impunes por esses labirintos. O “23”, por exemplo, ganhou novos moradores depois de instalados: o local se tornou “favela palafita”, nas margens lamacentas do Ribeirão dos Padilhas. Tornou-se uma pequena Brasília Teimosa, a famosa favela recifense. Uma chacina no Campo Cerrado, em junho do ano passado, matou quatro pessoas de uma única família, deixando marcas nos 1,6 mil moradores. O Xapinhal – com 384 mil metros quadrados só de área da Cohab foi por anos descrito como uma espécie de Brasilândia, a grande e dura periferia de São Paulo.

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É consenso de que as três vilas superaram uns tantos obstáculos, da ausência do poder público à violência, passando pelo pior de todos, a favelização. É o que mais impressiona – quer-se saber como conseguiram, em duas décadas, não virar um amontoado de sub habitações, o que as destaca em meio às 250 ocupações irregulares da capital. Um leigo que as veja, hoje, antes mesmo da papelada ficar pronta, resiste em qualificá-las como zonas de ocupação. A “23” se parece a uma Cohab antiga, uma Vila Nossa Senhora da Luz mais jovem. O “Campo” se confunde a qualquer loteamento minimamente planejado, mesmo estando no pior ponto da geografia urbana, o outro lado da linha do trem, onde antes havia um lixão.

Quanto ao Xapinhal, com folga o mais famoso do trio, deu adeus à fama de imensa favela para se tornar um reduto da classe C. Mirou-se no que há de melhor no Sítio Cercado, trocando aos poucos os casebres por sobrados com sacadas e comércio na parte de baixo. Sua Rua Marte rivaliza em comércio com a Rua Isaac Ferreira da Cruz – que nos dizeres populares só perde em variedade para a Rua XV. É daqueles lugares que impressionaria o urbanista italiano Bernardo Secchi, entusiasta das soluções saídas das zonas informais.

Sebastião Maria Oliveira, líder comunitário do Xapinhal, na divisa do Pinheirinho com o Sítio Cercado: comunidade criada em 1988 passou por todas as tormentas próprias das ocupações. Venceu as divisões internas e se integrou ao bairro que escolheu para chamar de seu, o Sítio Cercado.
O operário da construção civil Francisco Ramos, o seu Chiquinho, atravessa a linha do trem que faz uma das divisas do Campo Cerrado: ausência de vínculos iniciais entre os moradores foi vencida com mutirões para corrigir terreno esburacado, um antigo depósito de detritos.
Seu Francisquinho, líder comunitário do Campo Cerrado: área superou problemas, como a linha do trem.
Cenas da vila. Campo Cerrado é como uma cidade do interior.
Vera Lúcia e Arlete com a foto do dia da ocupação da Vila 23 de Agosto, em 1991. Local nasceu das Comunidades Eclesiais de Base.
Vera Lúcia Soares Peres e Arlete Paixão seguram foto da ocupação da Vila 23 de Agosto, em 1991: “Aprendemos a matar cobras e a ir em audiência pública”.
A cabeleireira Joelma Palmeira, na Vila 23 de Agosto, no Ganchinho. Motivos para festejar: filhos formados e uma razão para viver. “Tudo o que sei devo ao movimento pela habitação”.