O Estatuto do Desarmamento, alvo de resistências no Congresso, evitou 133.987 mortes entre 2004, quando entrou em vigor, e 2014, aponta um levantamento inédito. Enquanto pesquisadores defendem a restrição ao acesso às armas de fogo como medida essencial no controle à violência, projetos na Câmara e no Senado propõem a substituição da legislação por outra mais permissiva e autorizam o porte de arma a diversas categorias profissionais.
De acordo com o “Mapa da Violência 2016. Homicídios por armas de fogo no Brasil”, a ser lançado nas próximas semanas, a lei em vigor foi responsável por estancar o ritmo de crescimento desse tipo de crime no país. A taxa, que subiu em média 8,1% ao ano entre 1980 e 2003, cresceu 2,2% anualmente de 2004 a 2014. O cálculo foi feito com base nas vidas que seriam perdidas caso o aumento seguisse na velocidade registrada no período anterior à lei. “O que se pretendia com o Estatuto era estancar o crescimento dos homicídios, e isso foi alcançado. Agora, há o risco de relaxamento na legislação. A única finalidade da arma de fogo é matar”, diz o sociólogo Julio Jacobo Waiselfisz, da Flacso Brasil, autor do “Mapa da Violência”.
A principal iniciativa contra o Estatuto é o Projeto de Lei 3.722/2012, que revoga o texto em vigor. A medida de mais impacto libera o porte de arma, hoje praticamente restrito às Forças Armadas e a policiais. Caso a proposta seja sancionada, cidadãos comuns poderão andar armados, desde que cumpram alguns requisitos, como ter mais de 25 anos e comprovar capacidade técnica e aptidão psicológica. As restrições para a posse (ter arma em casa ou no ambiente de trabalho) também são reduzidas. Hoje, é necessário que a Polícia Federal, responsável por emitir a licença, reconheça a “efetiva necessidade” no pleito pela arma. O projeto, já aprovado por uma comissão especial da Câmara, está pronto para ser apreciado em plenário. Não há ainda uma previsão sobre a data de votação.
Em paralelo, outras propostas defendem a flexibilização do acesso às armas. Levantamento do Instituto Sou da Paz registra que apenas em 2015 36 iniciativas com esse objetivo foram protocoladas na Câmara. O Projeto de Lei 704/2015, do deputado Ronaldo Benedet (PMDB-SC), autoriza o porte de arma para advogados. Em outra frente, a Comissão de Direitos Humanos do Senado aprovou a extensão do porte para oficiais de Justiça, auditores tributários e defensores públicos. Agentes de trânsito também poderão portar armas, segundo projeto de autoria do ex-deputado Tadeu Filipelli, pronto para ser apreciado no plenário do Senado.
Há ainda uma proposta do deputado Eduardo Bolsonaro (PSC-SP) que determina o empréstimo, pelo Estado, de uma arma para o cidadão que tenha tido sua arma apreendida em função de um ato não considerado ilegal, como casos de legítima defesa. Outros parlamentares atuantes são os deputados Alberto Fraga (DEM-DF) e Onyx Lorenzoni (DEM-RS). Entre 2002 e 2014, a indústria armamentista doou R$ 10 milhões para campanhas – metade diretamente para candidatos à Câmara e ao Senado, segundo o Tribunal Superior Eleitoral.
Pesquisas
Os defensores de leis menos rígidas afirmam que mais armas em circulação representariam menos crimes, porque inibiriam criminosos. Especialistas em segurança pública contestam o argumento e frisam que não há comprovação científica dessa relação. Ao contrário: pesquisas indicam que o aumento no número de armas leva ao crescimento de ocorrências criminais.
Um artigo publicado este ano pela Universidade de Oxford analisou 130 pesquisas, em dez países, e atestou que leis que limitam o acesso a armamentos estão relacionadas com quedas nas mortes por armas de fogo. O pesquisador do Ipea Daniel Cerqueira, autor de uma tese de doutorado sobre o assunto, analisou estatísticas do estado de São Paulo entre 2001 e 2007 e concluiu que o aumento de 1% no número de armas provoca um crescimento de 2% nos homicídios. “Outras pesquisas apontam na mesma direção, o que dá uma maior certeza de que aquilo está refletido na realidade. A maior difusão de armas gera mais risco para a sociedade”, afirma.
A pesquisadora Michele dos Ramos, do Instituto Igarapé, critica a falta de evidências estatísticas nos projetos que estendem o porte de armas para determinadas profissões, sob a alegação de risco. “Os projetos não apresentam dados sobre a vitimização dessas categorias e ignoram as mortes em categorias com porte, como os policiais. Os estudos mostram que as armas não são um bom instrumento de defesa”, afirma.
O deputado Rogério Peninha Mendonça (PMDB-SC), autor do projeto que revoga o Estatuto, diz que os homicídios por arma de fogo deveriam ter diminuído após a lei, o que não ocorreu. “Não quero armar a população. Meu objetivo é garantir o direito à legítima defesa. Na estatística não entra quem tem uma arma, dá um tiro para cima e assusta o ladrão. Caso as pessoas de bem não estejam treinadas para se proteger, os massacres vão ser cada vez mais comuns”, afirma o deputado, que já foi dono de uma arma, entregue após o Estatuto entrar em vigor.